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Saturday, June 14, 2008

Virtual Realidade Parte 140


Sara, restabelecida do susto, regressara a casa e decidira começar a dedicar-se mais à sua pessoa.

Se o novo romance fosse o sucesso que esperava, e o caso Inês fosse levado a bom porto como também esperava, tiraria umas férias por tempo indeterminado nalgum lugar paradisíaco da terra, também para tentar esquecer Eduardo.

Juntou o derradeiro capítulo ao resto do texto e guardou tudo em dois CD: um para o seu arquivo pessoal e outro para enviar à editora. O seu novo romance estava pronto.

A caça ao Victor, planeada com a polícia, verificar-se-ia dentro de poucos dias. Só depois enviaria a obra para ser publicada, evitando assim qualquer fuga de informação que pudesse anular a execução do plano.

Lentamente, esticou os braços, num apetecido espreguiçar, ampliando desse modo a sensação de prazer que lhe dava haver terminado mais um romance, e sorriu quase feliz.

Levantou-se da cadeira e dirigiu-se ao quarto de dormir para se olhar no grande espelho encaixilhado, pendurado na parede por cima do aparador.

Sara sabia que ficava sempre mais bonita, com a alma plena de emoção por um trabalho cumprido.

“Se o Eduardo me visse agora!”, pensou, “ Mas não, não posso ter essa esperança. Ele é dos que não amam em vão, de que me adianta sonhar?”

­─ Tanto pior para ti, minha querida! ­─ disse, falando em voz alta para a imagem no espelho. ─ A vida não é um romance em que o autor possa mudar o rumo dos acontecimentos. E se for, quem é ele e onde está? Se eu o soubesse tentaria suborná-lo para que fizesse o Eduardo esquecer a Luísa e gostar de mim.

Quase sorriu perante a ideia e permaneceu largos segundos estática, os olhos fixos nos olhos da imagem no espelho, uma lágrima que não sentia no seu rosto deslizando pelo rosto da outra, estranha, postada na sua frente, mantendo teimosamente o olhar fixado no seu.

─ Quem és tu?

­─ Sara? ─ perguntou uma voz do outro lado do telemóvel quando ela, quase inconscientemente, atendeu a chamada que a fizera sair, de súbito, do íntimo devaneio.

─ Como?! ─ inquiriu surpreendida, pensando estar a ser vítima de uma alucinação e que era a voz que lhe respondia do outro lado do espelho. ─ Eu não estou maluca! ─ acrescentou.

─ Sara, que se passa, amiga? Estás bem? Sou eu, o Eduardo.

─ Desculpa, não te reconheci a voz! Estou bem sim, obrigada.

─ Tens a certeza?

─ Tenho, tenho! Só que o telefone surpreendeu-me embrenhada nos meus pensamentos e não me consegui livrar deles de repente.

─ Bom, espero que sim.

─ Obrigada!

─ Era para te dizer que o teu medalhão apareceu.

─ Que bom! Onde estava?

─ Na gaveta da mesa-de-cabeceira do quarto onde dormiste. Quem é na fotografia? ─ perguntou ele, como se não a reconhecesse.

─ Eu e a minha irmã gémea de quem não sei mais o paradeiro há muitos anos. Chamava-se Mariana.

─ Ah!

Eduardo percebia agora o ar de semelhança que, desde o início, notara entre Sara e Mariana. Não que o passar dos anos não as tivesse mudado bastante, mas Sara apresentava ainda certas expressões que lhe faziam recordar a antiga namorada. Lembrava-se vagamente de Mariana lhe ter falado numa gémea, mas, como nunca a conhecera, a recordação da existência de uma irmã gémea havia-se esbatido e apenas ficara com a ideia de que eram vários irmãos e irmãs.

“Mariana e Sara!” ─ imaginou-as tentando recuar ao tempo daquela foto, guardado no fundo da sua memória.

Até se esqueceu de que estava ao telemóvel e foi despertado pela voz de Sara que estranhou o silêncio dele:

─ Alô menino, estás aí?

─ Estou, estou, desculpa!

─ Ah, ok! Tem cuidado, por favor, que tenho muita devoção por esse medalhão!

─ Fica tranquila!

─ Não tens mais nada para me dizer?

─ Também queria saber como vai aquilo. Há novidades?

─ Sim, há. Estava para te ligar. Temos de nos reunir com a Inês e os pais. Um elemento da polícia irá também estar presente. Combina com eles e diz-me quando pode ser para eu tratar do resto. Está tudo planeado e será para breve, só falta reunirmo-nos todos para ficarmos por dentro dos detalhes e de como cada um deve agir.

─ Está bem. Tratarei disso o mais breve possível. Assim que estiver, ligo-te.

Sim, faz isso!

─ Estás no computador?

─ Mais ou menos: tenho-o ligado e também o MSN, mas não tenho estado atenta.

─ Queres falar no MSN?

─ Sim, sim, pode ser!

Desligaram os telemóveis e foram para os computadores.

─ E agora posso saber que pensamentos eram aqueles que te absorviam tanto?

─ És mesmo cusco! ─ respondeu Sara numa gargalhada forçada ─ Claro que não podes, são coisas muito minhas!

─ Ok, não se fala mais nisso! Eu só queria ajudar.

─ E podias ajudar-me muito se quisesses. ─ soltou a escritora num desabafo espontâneo como um lamento.

─ Como? Mas sabes que eu sempre estarei ao teu dispor para te ajudar, agora se não me contas…

─ Não é isso, desculpa! Eu sei que és um bom amigo, mas…

─ Sabes que não mandamos no nosso coração. ─ respondeu Eduardo, percebendo onde ela queria chegar.

─ Eu sei, desculpa, não posso evitar! Este meu destino de ver tudo de fora e chegar atrasada aonde devia chegar a horas…

─ Acho-te muito desanimada hoje; não pareces a Sara que eu conheço. Espero que não tenhas tido uma recaída!

─ Não, fisicamente estou bem. Mas o que são os meus problemas pessoais comparados com os que nos afectam a todos? Ouviste as notícias hoje? ─ perguntou, mudando bruscamente de conversa para não se emocionar mais.

─ Não, perdi alguma coisa?

─ Municípios a prepararem-se para instalar câmaras de vigilância por todo o lado, em nome da segurança dos cidadãos, ignorando a privacidade que é uma coisa muito de cada um de nós, sagrada, que ninguém devia poder devassar. Só te digo que vamos a caminho de permitir aos nossos chefes um poder ilimitado de tal modo que se tornará impossível depor os ditadores como foi no passado.

─ Sim, se assim for, é muito preocupante! E mais ainda porque continuamos a educar as nossas crianças de modo a precisarem sempre de chefes pela vida fora, numa estrutura caracteriológica fascista. George Orwell veio adiantado, mas paulatinamente o Big Brother vai-se instalando.

─ E com a permissão ou a inconsciência de todos.

─ Inclusive dos nossos actuais dirigentes, porque seria demasiado perverso acreditar que o fazem de propósito. Isso levar-nos-ia a pensar que são eles os promotores do banditismo para poderem justificar a lenta eliminação da nossa privacidade, o que não é de todo verdade.

─ Mas que seja em ditadura ou em democracia, é um facto que sempre nos querem manipular.

─ Sendo que em democracia é necessário inventar truques subtis e muita mentira, mas a verdade é que o conseguem.

─ Também o conseguem porque as pessoas estão receptivas a isso. Sem um chefe, mesmo enganador, sentir-se-iam perdidas e no estado actual de funcionamento do psiquismo humano seria desastroso, para as nossas sociedades, não haver chefes que fossem capazes de impor uma ordem.

─ É isso mesmo, o nosso pavor da liberdade impede-nos de assumirmos a responsabilidade de governar as nossas próprias vidas e delegamos nos líderes essa função. E será sempre assim enquanto as crianças forem educadas como são.

─ Mas quem as poderia educar de outro modo?

─ Só algumas pessoas mais esclarecidas e bem-intencionadas; porque a mesma educação criou, na maioria, a estrutura psicológica que lhe permite reproduzir-se. E essa estrutura é de tal modo eficaz, uma espécie de segunda natureza, que nem conseguem compreender e muito menos aceitar que alguém pense diferente.

─ Entendo isso perfeitamente! É uma espécie de cegueira geral que até se defende perseguindo maldosamente quem tenta lutar contra a corrente.

─ Tudo isso e muito mais. Estamos no cerne de todos os males do mundo.

─ Quer dizer que não temos escolha senão abdicar da nossa privacidade em nome da segurança?

─ É o que parece. Eu não queria ser tão pessimista, mas isso é apenas um pormenor. Haverá protestos, certamente, por parte de alguns activistas ou aproveitadores políticos, mas serão dúbios e tímidos e a coisa avançará. As condições económicas do povo, estimulando o medo, constituem a cama ideal onde assentará a decisão; a não ser que instâncias superiores, por algum chefe esclarecido ou inconstitucionalidade, não venham a autorizar.

─ Estamos nas mãos dos nossos líderes.

─ Fomos nós que os escolhemos…

─ Ou foram eles que nos escolheram a nós?

─ Na prática vem a dar no mesmo, porque escolhemos a escolha que eles nos impuseram pela propaganda; e faz melhor propaganda quem recebe mais dinheiro das instituições e quem recebe mais dinheiro das instituições são os partidos que mais garantia ideológica dão de manter o estado das coisas e assim tudo continua igual.

─ Ou seja, todas as tentativas que possamos querer levar a cabo para mudar o rumo da nossa vida esbarrarão irremediavelmente na estrutura psíquica humana que se tornará reaccionária quando sentir que as suas verdades ancestrais muito queridas começam a ser postas em causa.

─ E essa reacção pode chegar, e já tem chegado em vários momentos da história, a manifestações de extrema crueldade.

─ Diria que todas têm essa origem.

─ Também acho que sim e a manifestação de crueldade mais comum e consensualmente aceite por todos é a que se pratica sobre as crianças com a educação. Se conseguíssemos reverter isso começaríamos a eliminar os grandes problemas da humanidade.

─ E não tardará muito que nos possamos vigiar uns aos outros de e em qualquer parte do mundo através da Internet ou outra rede semelhante. Lembra-te só do Google Earth!

─ É verdade e temo que já haja quem se esteja a posicionar nos melhores lugares para dominar o mundo.

─ As empresas de comunicações, por exemplo.

─ Sabes uma coisa, vou deitar fora o meu telemóvel!

─ E eu também!

Despediram-se com uma gargalhada.

Continua...

8 Comments:

Blogger Miguel Augusto said...

Eu estou em pulgas para comprar o meu novo telemovel... :)!

Percebo a questão da vigilância e os seus contras, mas não acreditando que se possa perder muita privacidade, num mundo que cada vez menos é privado!

6:05 pm  
Anonymous Anonymous said...

Que maravilhosa conversa filosófica e sociológica têm Sara e Edu aqui sobre os rumos dos valores e regras da sociedade actual.
E é verdade isto, que ninguém mais se iluda, neste mundo compacto e globalizado... até este simples comentário poderá estar (e acho que está)a ser monitorizado e lido por terceiros que nada têm a ver com isto!
Estou a sorrir e digo-vos porquê... é que, com os avanços tecnológicos - e são tantos os benefícios que daí advêm, a muitos níveis... na medicina, nas telecomunicações, no ensino, na aprendizagem de novas descobertas em tantas matérias até agora desconhecidas, etc, etc, que esquecemos que a nossa privacidade também vai ser posta a descoberto.
Pensam, e eu também penso, que muita da privacidade mais pessoal tem de ser privilegiadamente resguardada... mas será?! Eu tenho muitas dúvidas!
Bom, não poderia acabar este comentário, e pegando no conto em si, dizer que Sara e Edu estão "ligados" por cordões muito fortes... esta ligação entre ambos e a gémea Mariana ainda vão dar para muitas linhas de palavras para enriquecer esta história linda.

Mais um capítulo excelente autores... e sempre muitíssimo bem escrito!

Beijinhos e abraços.

8:07 am  
Blogger O Profeta said...

Sou!? Serei apenas um desalinhado?
Pensador fugitivo ao agreste sonho
Uma pedra pensante no meio da ilha
Meio Homem, meio Arcanjo, um ser bisonho


Boa semana


Mágico beijo

10:19 am  
Blogger lena said...

bem conseguido o diálogo entre a Sara e Edu, apesar de ser suspeita, pois adoro estes personagens

tanto um como outro têm valores muito idênticos e o diálogo quase foi uma reflexão do que se passa no nosso dia a dia

a privacidade de cada um quase posta em causa, é verdade sim, com o avanço das novas tecnologias, com a exportações de dados obrigatórios, a privacidade dentro de alguns anos é nula

o país que temos ou o mundo em que vivemos, já nada sei….

adorei como sempre ler-vos, um capítulo muito bem escrito

um triangulo que ainda nos vai trazer muitas novidades, as gemias e o Eduardo

beijinhos muitos a ti Isa e ao Luís, como sempre um abraço terno e amigo

além de estar a adorar o que escrevem, adoro-vos aos dois amigos lindos

lena

10:36 am  
Blogger maresia_mar said...

Olá

hoje o meu blog é bébé..
bjhs e boa semana

4:25 pm  
Blogger tb said...

Mas as sementinhas, ainda que tímidas, vão sendo espalhadas e um dia frutificarão. Aí, tudo será diferente. :)
Um bom momento de reflexão do mundo que nos rodeia.
beijinhos

6:29 pm  
Blogger Nilson Barcelli said...

Continuo a ler.
E a perceber que muita coisa está para acontecer...

Beijinhos e abraços.

11:15 pm  
Anonymous Anonymous said...

Parte 140 - Sara à conversa com Eduardo (tenho a minha opinião sobre Sara e é pessoal)

6:26 pm  

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