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Saturday, March 11, 2006

Virtual Realidade Parte 09

Eduardo desligou. Já nem ouviu as últimas palavras de Luísa, nem recebeu o beijo dela de despedida. Estava cansado. Tinha viajado muito nesse dia, visitado muitos médicos no exercício da sua profissão. E, apesar de no dia seguinte ser sábado e não trabalhar, andava com falta de horas de sono e não queria deitar-se tarde.
Luísa era simpática, meiga e doce, ou pelo menos assim parecia; mas ele não se queria
entregar de novo ao amor. Já tinha sofrido bastante por causa de uma mulher e também não andava no IRC para encontrar a paixão da sua vida. Frequentava aquele meio porque lia bastante e gostava de trocar ideias com as pessoas sobre as leituras que fazia. Sempre imaginou que o IRC lhe permitiria alargar o leque das possibilidades de encontrar pessoas que tivessem o mesmo gosto pela leitura e pela troca de ideias que os livros proporcionavam. Mas desiludiu-se rapidamente. Em pouco tempo verificou que aquilo era frequentado quase exclusivamente por pessoas frustradas na sua sexualidade natural, por motivos vários, que ele conhecia, e que usavam o mirc para tentarem conseguir o que de outro modo teriam muita dificuldade. Sodoma e Gomorra tinham ali também o seu campo de actuação privilegiado. E por outro lado sofriam quase todos de uma grande falta de cultura. Só sabiam falar de futebol, sexo e pouco mais, sempre vendo as coisas pelo lado irracional.
Também havia os racistas e xenófobos que, ao abrigo do anonimato, não se coibiam de expelir pelas suas cloacas infectas as bacoradas que lhes são peculiares.
O IRC era o espelho dum país, pensava.
A única actuação que dava algum sentido à sua continuação no IRC era a ajuda que de vez em quando prestava a alguém que dela necessitasse e a pedisse. E apareciam pedidos de ajuda no canal Portugal com alguma frequência. Eduardo ia sempre ter com eles a perguntar o que precisavam; e apareciam pedidos de ajuda na resolução de problemas relacionados com os estudos: a maioria eram de alunos em dificuldades com alguma matéria do ensino, outros eram relativos ao funcionamento de computadores ou de determinados programas informáticos. Eduardo muitas vezes conseguia ajudar e ficava satisfeito com isso, mesmo que nem sequer um obrigado lhe dessem.
Mas começava a ficar saturado, decidido a abandonar definitivamente aquilo, quando encontrou Luísa. Ela foi o oásis no meio daquele deserto de desesperante desolação. Agora começava já a sentir por ela uma amizade, uma ternura que, notava ele, ia crescendo à medida que iam falando. Mas ele era muito prudente naquelas coisas das conversas on-line. Afinal não a conhecia de lado nenhum. E sentia-se muito bem a viver sozinho a sua liberdade. Não lhe faltava nada, tinha tudo o que precisava e, acima de tudo, era livre. Não tinha de dar contas a ninguém de coisa nenhuma. “Como é bom ser livre!”─ Suspirava muitas vezes.
Quando começou no mirc prometeu a si mesmo que jamais querer conhecer pessoalmente alguém do IRC. Iria manter sempre os dois mundos absolutamente separados: o real e o chamado virtual. Desse modo estaria sempre defendido de dissabores.
Essa liberdade quase absoluta de que gozava trazia-lhe por vezes o gosto amargo da solidão. Era quando se entregava às recordações de infância, o menino calmo que tinha sido, as amarguras por que passou e o achar que não tinha merecido aquilo que lhe tinham feito. Nesses momentos chorava as saudades do menino bom que tinha sido, da possibilidade de ser feliz que lhe tinham roubado…
Geralmente evitava recordar esses momentos. Apenas o fazia quando a solidão tomava conta do seu espírito. Por isso recusou contar à Luísa como tinha sido a sua infância. Por isso desligou quase bruscamente sem ter recebido o beijo dela.
Deitou-se e custou-lhe adormecer. Não podia deixar de pensar em como tinha sido pouco elegante ter abandonado Luísa daquele modo. O que estaria ela a pensar nesse momento? Já se teria deitado e também não conseguia adormecer?
Aquilo custava-lhe porque ele não era assim. Mesmo sabendo que ela se o encontrasse na rua não o reconheceria, não eram modos de proceder, até por uma questão de respeito para consigo mesmo. Mas agora estava feito e não podia já alterar nada.
Pegou num livro para ler um pouco, como sempre fazia antes de adormecer. Adorava ler. Tinha muito a agradecer aos livros a ajuda que lhe tinham dado na compreensão do mundo dos homens e no conhecimento de si mesmo. Gostava de ler as obras de Wilhelm Reich que considerava juntamente com Sigmund Freud os maiores génios do século XX. Ambos tinham escancarado as portas da alma humana. Mas também gostava dos clássicos da literatura universal: Tolstoi, Dostievski, Proust… Nessa noite olhava o livro na sua frente mas não via as letras nele escritas. Era o «À Sombra das Raparigas em Flor», 2º. volume de «Em Busca do Tempo Perdido» de Marcel Proust, que lia pela 5ª. vez na vida. Aquela era para ele a obra literária de referência. Mas nessa noite nem via as letras; o pensamento fugia-lhe para longe ao encontro de Luísa. Acabou por adormecer já tarde com a luz acesa e o livro, resvalando das mãos que deixaram de o prender, precipitou-se no chão do quarto.

Continua...

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