Virtual Realidade

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Friday, November 24, 2006

Virtual Realidade Parte 62


Tinha começado o mês de Novembro e trazido consigo a melancolia dos dias chuvosos e frios que se alastravam por todo o país. Eduardo nesta época tinha sempre bastante trabalho na horta o que lhe roubava grande parte do tempo disponível. Era o tempo da plantação da couve-naba, das favas, dos morangueiros e da poda das roseiras.
Com um sorriso rasgado tinha acabado de desligar o telefone: ligava a Luísa todos os dias de manhã e à noite para namorarem um bocadinho. Aqueles minutos ao telefone eram preciosidades de que nem um nem outro abdicariam por nada deste mundo.
Mas Eduardo andava deveras preocupado com o problema de Inês.
Foi ao computador ver se tinha correspondência e havia um e-mail da Sara que dizia o seguinte:
“Boas noticias: o nosso «amigo» tem o mesmo nick e já falei com ele fazendo-me passar pela Inês. Este jogo é muito delicado e não pude falar com ele muito tempo porque não conheço as conversas que anteriormente ele teve com a menina. Tive de arranjar uma desculpa de que estava constipada e me doía a cabeça para não ser apanhada.
Ele é muito sabido e viu que o IP não era o mesmo da Inês. Tive de lhe explicar que estava em casa de uma amiga e acabou por acreditar. Como vês todo o cuidado é pouco e sei estas coisas dos IPs porque tu me ensinaste. Quanto ao nick, nada mais natural a Inês ter arranjado outro. (risos)
Já tenho um plano mais ou menos alinhavado para apanharmos o tipo, mas preciso que me descubras uma informação preciosa, se te for possível: tenho de conhecer todas as conversas que houve entre os dois. Pergunta à Inês se as tem guardado no PC e se te permite copiá-las para mim. Diz-lhe que pode confiar que eu não as divulgarei. Tu confias em mim, não confias? É que sem esse conhecimento tudo será mais difícil.
O meu plano é fazer-me passar por ela para o poder atrair para um encontro comigo, pensando ele que se vai encontrar com ela. Estás a ver a ideia?
Quando falarmos explicar-te-ei melhor porque entretanto também vou aperfeiçoando o meu plano. Vê se me consegues os logs se a Inês os tiver. Se não os tiver resta a alternativa de ela estar ao pé de mim quando eu falar com o fulano, mas isso seria um pouco mais complicado uma vez que não moramos próximo.
Um beijo.
Sara.”

“Rapariga esperta esta Sara!”, pensou. “A coisa começa a rolar. Terei de falar com a Inês e com os pais o mais rapidamente possível. O plano para apanhar o energúmeno parece-me bem.”
Estava contente por ter encontrado a Sara. Quem melhor do que ela o poderia ajudar? Já tinham falado várias vezes no IRC e achava-a inteligente, determinada e simpática. Fisicamente não fazia ideia nenhuma de como ela seria. Apenas sabia que era um pouco mais nova do que ele, e que era gémea, mas há mais de duas décadas que não sabia da irmã e, além do que se referia ao trabalho dela, nada mais sabia a seu respeito; também nunca lhe tinha perguntado e pouco lhe tinha dito sobre si mesmo. Parecia-lhe uma pessoa de confiança. De facto nem se tinha lembrado da Sara e ela apareceu num momento muito oportuno, o que lhe facilitou as coisas.
Desligou o PC e telefonou ao Pedro.
─ Eduardo? Diz…
─ Sim, sou eu e tenho novidades sobre aquele assunto.
─ Já! ─ Admirou-se o Pedro.
─ Já. Não temos tempo a perder.
─ Oh pá, mas é tão mau assim?! Tu não me assustes!
─ Não, fica calmo. Estou a ligar porque preciso de falar convosco o mais rápido possível.
─ E dizes que não me assuste…
─ O caso não é grave mas pode vir a ser se não agirmos quanto antes. Mas eu conto-vos tudo depois. Precisamos de ter uma conversa os três.
─ Os três?! ─ Pedro estava cada vez mais admirado com o amigo.
─ Sim, tu, a Teresa e a Inês e eu. Afinal é os quatro.
─ Todos juntos?
─ Primeiro falarei com a Inês em particular e depois todos juntos.
─ Calha bem que amanhã sendo sábado podes vir cá jantar e poderemos falar a seguir.
Eduardo demorou uns segundos a responder, lembrou-se repentinamente de Luísa. O primeiro fim-de-semana que iriam passar juntos. Mas pensou que ela ia compreender, não podia adiar este assunto por mais tempo. Inês podia realmente estar em perigo. Por fim respondeu:
─ Já que insistes tanto, para não ser indelicado, aceito o convite. ─ Riu Eduardo.
─ Pois, pois! Quem te conhecer… ─ Riu Pedro também. Ouve lá, mas nós podemos ficar tranquilos?
─ Claro que podem! Não fiques a pensar coisas. Por agora só te posso adiantar que arranjei uma ajuda preciosa e que, com a colaboração de todos, vamos conseguir resolver o problema.
─ E o André? ─ Lembrou Pedro.
─ Tem 10 anos não é?
─ Sim.
─ Ele também já navega e usa o IRC?
─ Pesquisas na Internet já faz, jogos também, agora se anda no IRC não faço ideia.
─ Pois!... Talvez seja bom ouvir. Terei de falar com ele primeiro em particular, mas penso que não lhe fará mal nenhum ir conhecendo os perigos que pode correr na net.
─ Sou da mesma opinião. ─ Retorquiu Pedro.
─ Então até amanhã. Um beijo à Teresa e diz-lhe que não tenha muito trabalho por minha causa.
─ Eu ajudo-a se for preciso! Não é por tu mereceres, é por termos bom coração.
─ Eu sei. Beijos às crianças também.
Desligaram.
Eduardo ficou a pensar que era estranho os pais não saberem exactamente o que os filhos faziam, não para os controlar ou proibir, mas, devendo ser os seus melhores amigos, para os orientar e alertar dos perigos, quando fosse o caso, sem desrespeito pela liberdade deles.
Por melhor intencionados e esclarecidos que sejam, os pais, na maioria dos casos, passam o dia a trabalhar e não têm o tempo nem a energia necessários para acompanhar os filhos. As exigências em assegurar o sustento da família, o gerir da carreira, a competição, em muitos casos o receio de perder o emprego, com as contas a pagar, esgotam as possibilidades de tempo e disposição para os filhos. Estes, fora dos horários escolares, são deixados, ao cuidado de gente estranha, ou em casa sozinhos com a televisão, os jogos de vídeo, o computador, ou ainda nas ruas quando são mais pobres, recebendo assim todo o tipo de influências e, por sua vez, influenciando-se mutuamente uns aos outros na sua inexperiência e falta de capacidade critica, sendo facilmente vitimas de gente sem escrúpulos, sejam os predadores do sexo, os traficantes de drogas ou os anunciantes da TV a quererem vender-lhes a felicidade sob a forma de todo o tipo de inutilidades. E que dizer de alguns «maravilhosos» filmes, até de desenhos animados, que passam nos canais da televisão, que as crianças consomem avidamente sem saberem separar o bom do mau e que são tudo menos inocentes?
É sempre por necessidade da procura da felicidade, lei básica da vida, que as crianças, carenciadas do carinho e da atenção familiares, se tornam consumidores ávidos, compulsivos, de todas as formas de compensação que o mundo coloca à sua disposição com promessas de felicidade. É aqui que começa o mecanismo da ânsia de consumismo dos adultos que arrastaram pela vida adiante as suas carências afectivas e que são a grande maioria das pessoas. Isto é útil ao sistema de produção que assim se vê «obrigado» a produzir sempre mais, exigindo mais da sua força de trabalho e perpetuando desse modo o estado das coisas.
“Este mundo maravilhoso que nós criámos e ajudamos a sobreviver, como se fosse a coisa mais preciosa da nossa vida, não estará a matar essa mesma vida?”

E quando a este cenário se junta (e junta-se quase sempre) uma «educação» sexualmente negativa, o vazio interior que se cria no íntimo das pessoas torna-as desamparadas, depressivas, infelizes, irracionais, clientes de drogas, legais e ilegais, de curandeiros aproveitadores, de milagres e de padres, na tentativa, algumas vezes inútil, de fuga à impossibilidade de viver, ao suicídio.
Este é o pano de fundo sobre o qual se desenrola toda a irracionalidade humana, todo o tipo de comportamentos criminosos, todo o impotente desamparo das massas humanas.
Enquanto não entendermos isso e, a partir desse entendimento, não tivermos a coragem de ultrapassar os limites daquilo que as gerações anteriores nos legaram em termos psicológicos, de nada servirá lamentarmo-nos já que continuaremos a contribuir, alegre e inconscientemente embora, para a continuação do estado das coisas.
Com estes pensamentos Eduardo adormeceu.


Continua...