Virtual Realidade

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Location: Portugal

Friday, January 26, 2007

Virtual Realidade Parte 70


Era tarde quando Eduardo chegou a casa, preocupado com aquela reunião que quase tinha descarrilado por falta de cuidado da sua parte. Ainda assim evitou fazer algumas referências, que poderiam ter criado um clima de maior oposição como, por exemplo, o facto de o aparente distúrbio alimentar da Inês poder estar relacionado precisamente com a educação, porque isso seria uma acusação directa implícita demasiado evidente. Felizmente que nem o Pedro nem a Teresa o tinham questionado nesse sentido, caso contrário teria sido quase impossível iludir a resposta e as consequências para aquela amizade de longos anos poderiam ter sido assaz nocivas.
Sabia que era difícil as pessoas mudarem depois de muitos anos de actuação dentro das normas estabelecidas, seguidas e aceites por todos, com as quais se sentiam seguros e por isso incapazes de as colocar em causa ou sequer em dúvida. O mundo sempre tinha sido assim, era a explicação que davam, sem se darem ao trabalho de pensar porquê, nem notarem a irracionalidade do frágil argumento, mas os resultados no comportamento dos filhos vinham provar que algo estava errado. E não era apenas nos filhos do casal amigo, mas, de um modo geral, no de todos os adolescentes, aos quais um conhecido jornal diário se tinha referido, tempos antes, como a geração «rasca», como se a culpa fosse dos próprios jovens.
Apesar do adiantado da hora não foi imediatamente para a cama porque sabia que iria ficar a pensar por largo tempo em tudo o que se tinha passado, sem conseguir conciliar o sono. Assim decidiu ir um pouco ao computador e entrar no IRC na tentativa de, em conversas vulgares e anónimas, fazer baixar o ritmo da maré pensadora. Mas com outro nick, para não ser encontrado por ninguém conhecido. Na notify list «viu» o Rui e a Luísa mas não lhes falou.
Mal entrou no canal Portugal, logo alguém apareceu em pvt:

A-bello ─ estás a analisar?
Analise ─ és inteligente ou finges apenas?
A-bello ─ as duas coisas
A-bello ─ outras vezes nenhuma delas
A-bello ─ e tu?
Analise ─ gostei dessa! Nem eu teria conseguido responder melhor
A-bello ─ nem tu? porquê? és inteligente?
Analise ─ procuro cultivar a inteligência
Analise ─ elevaste o teu nível no meu conceito
A-bello ─ como poderia ter elevado, se eu não tinha nível nenhum?
Analise ─ eu atribuo sempre um nível à partida
Analise ─ um valor médio
A-bello ─ não sei se fazes bem
Analise ─ médio relativamente ao habitual aqui
Analise ─ o que quer dizer bastante baixo
A-bello ─ ao atribuíres esse valor médio podes estar enganada....
Eduardo fingiu não reparar que o outro pensava que ele era mulher.
Analise ─ estou sempre, mas geralmente ficam abaixo desse valor
A-bello ─ por outro lado, podes ser levada a confirmar esse valor, mesmo que ele não esteja correcto
Analise ─ para efeitos práticos acabo por obter sempre a verdade útil
Analise ─ como não é uma análise para fins científicos, serve muito bem
A-bello ─ ah, pois é... mas a verdade útil pode apenas ser "a tua verdade"
A-bello ─ aquilo que vês, pode não corresponder à realidade
Analise ─ estás a querer dizer-me que é esse o teu caso?
Analise ─ espero que não
A-bello ─ é o meu não... é o de toda a gente...
A-bello ─ cada um tem a sua verdade, não é?
A-bello ─ e essa verdade, pode ou não ser verdade
Analise ─ no fundo, existem sempre verdades objectivas
Analise ─ mas muitas vezes difíceis de alcançar
Analise ─ por isso, temos de nos contentar com verdades práticas para nossa própria defesa
A-bello ─ as verdades a que tu chamas "objectivas", são imutáveis?
Analise ─ podemos considerar que sim já que não mudam visivelmente no decurso de uma vida…na maioria dos casos
Analise ─ como eu dizia… é melhor fazer as avaliações por baixo porque será sempre preferível
A-bello ─ desculpa, interrompi-te o raciocínio
Analise ─ verificar que nos enganámos por defeito do que por excesso
A-bello ─ não será melhor não avaliar a partida, e manteres o "espírito" aberto?
Analise ─ não deixo de ter o espírito aberto. Aquilo é apenas para colocar a informação que vier a seguir num modelo coerente e inteligível
Analise ─ não é um esquema rígido
A-bello ─ mas assim já tens uma grelha, uma matriz... isso pode ser mau... ou é sempre bom?
Analise ─ sempre bom
A-bello ─ porquê?
Analise ─ porque facilita a ordenação da informação e permite assim memorizá-la melhor, aliás, penso que toda a gente faz isso
Analise ─ tu quando começas a teclar com uma pessoa e antes de a conheceres
Analise ─ não constróis logo um boneco na tua cabeça que represente essa pessoa, ainda que de forma esquemática e forçosamente imprecisa?
A-bello ─ eu não
Analise ─ pois eu faço. Depois o boneco vai sendo aperfeiçoado, ganhando consistência, à medida que
A-bello ─ mas, de forma geral, as pessoas fazem isso, mesmo sem se aperceberem
Analise ─ vamos recebendo mais informação do outro lado; sendo que
A-bello ─ aperfeiçoando ou nao...
Analise ─ até nos podem enviar uma foto errada
A-bello ─ não gosto muito de ter o trabalho de construir e depois de reconstruir
Analise ─ mas estamos sempre de pé atrás e se viermos a descobrir a verdade, isso não nos afecta minimamente
A-bello ─ se faço o boneco, depois com os remendos, nunca mais fica em condições
Analise ─ fica sempre em condições
Analise ─ e por outro lado não contes ter acesso a toda a informação do outro lado
A-bello ─ pode ficar um bocado torto
Analise ─ e terás de te contentar com o boneco mesmo torto
Analise ─ ou boneca...formado por aproximações sucessivas ao objecto real mas sem nunca o alcançar
A-bello ─ mas eu n me contento com pouco!
A-bello ─ ja passei a fase das bonecas (ou melhor, dos carrinhos)
Analise ─ pois eu não
A-bello ─ não!?
Analise ─ continuo a gostar delas
A-bello ─ és pequenina?
A-bello ─ e dos bonecos?
Analise ─ não, só bonecas
Analise ─ analise
A-bello ─ dos "palhaços" que andam por ai, sem ser no circo, é que não deves gostar muito, não é?
Analise ─ tens aí um pequeno enigma para resolver
A-bello ─ analiso a analise?
A-bello ─ eu não... dá muito trabalho
Analise ─ apenas o que eu disse e já tens matéria para muito
Analise ─ o meu tempo de antena findou
A-bello ─ ahh... bonecos, nem por isso, não é?
Analise ─ passa bem
A-bello ─ ok, o meu também, obrigado

“Este tem algum nível”, pensou Eduardo, “mas não me ajudou a deixar de pensar”, concluiu para si mesmo sorrindo.
Eduardo, embora entre bocejos que já lhe anunciavam a chegada do sono, ficou a olhar para a janela do canal Portugal, onde começava um debate curioso, que monopolizou a sua atenção.
X ─ pessoal, um amigo meu vai fazer uma operação arriscada depois de amanhã. É um menino com uma doença cardíaca complicada e não se sabe se sobrevive. Chama-se Nuno e eu pedia que todos acendêssemos uma vela por ele no dia da operação.
Y ─ sim, eu acendo
Z ─ força Nuno!
W ─ estamos contigo, vamos todos acender uma vela, gente!
Imagem ─ sim, força Nuno! Também torcerei por ti e desejarei que sejas bem sucedido, mas não acenderei vela porque acho isso descabido e irracional.
X ─ Oh pá, cala-te!
Z ─ Se fosse teu filho não falarias assim
Imagem ─ se fosse meu filho falaria assim com igual razão, porque filho meu não acharia bem que se queimasse oxigénio inutilmente. As velas são apenas folclore e superstição.
Z ─ e que mal tem uma vela?
Imagem ─ uma multiplicada por quantos? E não é a primeira vez que alguém faz isso. Imaginem milhões de velas a arder. Acham que isso teria algum valor para resolver o problema do Nuno? Mas tem de certeza muito valor em termos de consumo de oxigénio que faz falta a todos. E o dióxido de carbono produzido e o calor libertado?!... Já basta o mal que fazemos à natureza por razões que o nosso modo de vida tornou necessário.
Analise ─ tens toda a razão! Não há qualquer interesse em fazermos algo de errado quando sabemos que isso não nos traz benefício nenhum. Usemos a cabeça para não fazermos asneiras e o coração para torcermos pelo Nuno. Tenho uma boa sugestão para quem quiser fazer um sacrifício pelas melhoras do menino.
W ─ diz, qual sugestão?
Analise ─ se são todos tão solidários, e tenho a certeza de que sim, os que fumam façam o sacrifício de deixar de fumar e os outros vão a Fátima a pé.
Imagem ─ Boa ideia! De uma cajadada matavam-se 3 coelhos…
Analise ─ Alguém alinha! Está tudo calado…
X ─ mas isso também são coisas inúteis
Analise ─ pelo menos não prejudicam e são igualmente manifestações de solidariedade; não era essa a vossa intenção? E ainda mais profundas porque exigem sacrifício pessoal.
Imagem ─ Ninguém gosta de se sacrificar. Acender velas não custa nada e tranquiliza as consciências ao pensarem que fizeram qualquer coisa linda por razões humanitárias.
Analise ─ e agora calaram-se todos! Aquilo das velas era como ir a uma festa. No fundo, estas cabecinhas ocas todas espremidas não deitariam sumo nenhum!
Imagem ─ é bem verdade! E porque é que se fazem coisas sem pensar? Basta um sugerir e logo todos o seguem sem a mínima reflexão, mais parecendo um rebanho do que um conjunto de pessoas livres.
Analise ─ É verdade! Eu sei onde reside a avaria e, praticamente, nada se pode fazer para a remediar. Bom, vou mas é dormir que amanhã tenho um longo domingo pela frente!...

Continua...