Virtual Realidade

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Location: Portugal

Friday, October 26, 2007

Virtual Realidade Parte 108


A sala continuava com uma temperatura amena. O vento, lá fora, soprava mais forte e a chuva caía com mais intensidade. Sara enroscou-se numa manta abandonada em cima do sofá.
─ Ainda tens frio com a lareira acesa?
─ Não, mas sinto-me mais aconchegada assim, pelo abraço da manta.
Eduardo desligou a música.
─ Queres beber alguma coisa antes de me começares a massacrar? ─ perguntou Eduardo com um sorriso maroto.
─ Tomava um chá, se não fosse muito incómodo.
─ Nenhum. Também me apetece. Vou então preparar chá para os dois. Espera uns minutos.
Enquanto Eduardo preparava o chá, Sara sentou-se mais perto da lareira. Via o crepitar do lume e o fumo a subir para a chaminé do recuperador, o pensamento a divagar… “como tudo se podia esfumar de um momento para o outro. Tantas horas perdidas, tantas coisas que me fariam feliz. A chuva cai sem tréguas e eu, cá por dentro, só queria que ele me abraçasse. Queria um homem que me amasse, mas cheguei atrasada mais uma vez. Que sorte que teve essa namorada dele! O abraço que eu queria não era o da manta.”
Passados uns minutos, Eduardo entrou na sala transportando um tabuleiro, em regra, com tudo o que era necessário para a cerimónia do chá. Pousou-o sobre a mesinha, com a mestria de uma dona de casa japonesa, e, animado, perguntou:
─ Queres açúcar no teu chá?
─ Sim um pouco. Começa a contar-me agora a tua história, enquanto tomamos o chá, para não perdermos mais tempo.
─ Ok! Liga o gravador ─ Eduardo sorriu e começou com humor:
─ Nasci ainda nos anos sessenta, mas não me lembro de isso ter acontecido. Por certo aconteceu, já que estou aqui.
─ É a melhor prova de que nasceste, mas continua.
─ Só muito mais tarde comecei a perceber o que foi verdadeiramente viver em Portugal naquela época em que, no mundo ocidental, havia já uma revolução ideológica em curso, que mudaria para sempre o modo de encararmos a vida.
Só depois de setenta e quatro as nossas fronteiras se abriram aos ventos da Europa. A nossa ditadura não deixava passar nada.
─ E esses anos sessenta foram muito importantes para a evolução das mentalidades ocidentais. Mas nós nascemos e fomos educados ainda num ambiente de enorme repressão. Como foi que te safaste tão bem?
─ Talvez porque a minha mãe era um pessoa muito doce e de ideias liberais. Sempre respeitou o meu espaço e o meu tempo e ensinou-me a defender-me. Fui criado com ela até aos oito anos de idade.
Eduardo parou um pouco a remexer no baú das recordações. Chegava-lhe ao pensamento, todo o seu passado. Revivia tudo de novo e comparava o que tinha sentido na altura com os sentimentos que aquelas recordações lhe inspiravam agora.
─ E depois?
─ Depois ela morreu e fiquei a viver com os meus avós paternos.
─ Doença?
─ Acidente de aviação.
─ Ah! Lamento muito.
─ Já passou muito tempo.
─ E o teu pai?
─ O meu pai desesperado partiu em viagem. Passados alguns anos é que compreendi que foi para fugir à tirania da mãe. Mas como ia eu perceber isso com oito anos apenas? Senti-me completamente sozinho e abandonado pelas pessoas que mais amava. Chorei, gritei e, dia após dia, esperei o regresso dele com muita melancolia e ansiedade. Após muito vaguear, depois de vários anos pela Europa, começou a ficar cansado e, por fim, regressou; já eu nessa altura era adulto e tinha deixado a casa dos meus avós. Hoje somos muito próximos.
Os seus olhos cansados deixaram então brotar algumas lágrimas, que disfarçou indo colocar mais achas na fogueira.
─ Paraste?
Eduardo bebeu um gole de chá e voltou a olhar para ela.
─ Depois, a minha avó era uma ditadorazinha, cheia de preconceitos de classe. A minha segunda infância foi muito má, mas sentia que a minha mãe, onde estivesse, me guardava do mal.
─ Estou a ver…
─ Respirava-se ditadura em todo o lado: em casa, na escola, na igreja, na aldeia onde vivia. Mesmo depois no liceu cada professor era um tentáculo do estado. O medo de fazermos ou dizermos algo errado era permanente, mas dentro de mim havia um mundo bom e livre que só esperava uma brecha para poder respirar.
Os anos passaram dentro deste sistema, apesar de sentir uma grande revolta, fazia tudo para não desiludir os meus avós. Quando me sentia mais triste, procurava o meu refúgio, sentava-me numa enorme pedra a pensar na vida. O meu pensamento flutuava por terras sem fim. Eu tinha esperança que pudesse tocar no coração do meu pai, onde quer que ele estivesse. E o tempo foi passando….
Ate que um dia tive que provar o fel da tirania da minha avó e parti para nunca mais voltar.
Sara, ouvia atentamente toda a história e o seu olhar não se despegava do semblante dele; todos os gestos e movimentos oculares eram importantes para dar vida ao seu próximo livro.
Uma profunda tristeza invadiu Eduardo. Cerrou os olhos com força.
─ Sentes-te bem?
─ Não te preocupes. Foi uma época da minha vida que eu queria enterrar para sempre, mas que teima em sobreviver no meu coração.
Eu tinha vinte e poucos anos quando me apaixonei por uma empregada da minha avó. Vivíamos um grande amor em segredo. A minha vida tornou-se muito especial a partir do momento em que a conheci. Estávamos muito apaixonados. Vivemos meses de inteira felicidade.
Eduardo relembrou com saudade, a primeira vez que os seus olhares se cruzaram e sentiu o seu coração a pulsar fortemente, mas prosseguiu:
─ Muito bela e doce, mas muito pobre, tinha sido criada por freiras, e eu sabia que nunca seria aprovado aquele amor. Por isso encontrávamo-nos sempre às escondidas. O meu plano era acabar o curso e sairmos de lá.

─ Que curso? ─ Interrompeu Sara.
─ Agronomia. A minha avó queria que eu fosse para Direito, mas sempre me fascinou a terra e queria ser engenheiro agrícola.
─ E o teu avô?
─ Ele era mais liberal, mas, submetido a ela e com os problemas de saúde que tinha, não ousava defender-me.
─ E não o acabaste o curso…
─ Já lá vamos. Continuando… um dia ela desapareceu da quinta. Procurei-a como louco por todo o lado; não queria acreditar que tivesse tido a coragem de me abandonar. Mas um dos empregados contou-me que tinha sido a patroa que tinha descoberto o nosso romance e a tinha despedido; aí eu percebi tudo. A minha avó nem se importou com a situação dela que não tinha para onde ir. Doeu, doeu muito. Nessa mesma hora senti que tinha atingido o limite e decidi abandonar a casa, os estudos e fazer-me à vida por minha conta e risco. Sem plano, não sabia para onde ir, mas fui. Custou bastante andar uns dias à deriva sem ter onde dormir, até conseguir orientar um quartito, que só poderia pagar quando ganhasse algum dinheiro. Comecei a procurar emprego nos jornais e saiu-me o de delegado de propaganda médica, como se chamava nessa altura. Sem ambições nem família própria, tenho-o mantido até hoje.
─ Não continuaste a procurar a tua apaixonada?
─ Sim. Com a minha situação definida ainda a procurei durante uns tempos, mas nem rasto dela. Lentamente fui desistindo até a ter esquecido.
─ Imagina que um dia, inesperadamente, a encontravas. Achas que voltarias a sentir o mesmo por ela?
─ Já me tenho perguntado isso muitas vezes e não posso ter a certeza, mas acho que não.
─ É um risco que a tua namorada actual corre. Como é o nome dela?
─ Luísa.
─ Ela sabe que corre esse risco?
─ Sabe da história, mas do risco nem eu sei. Não vamos andar preocupados com hipóteses improváveis.
─ Mas não está completamente vazio o lugar da outra.
─ Restará sempre uma terna recordação.
─ Ainda um dia a vais reencontrar! ─ profetizou Sara.
Os olhos dele estavam rasos de lágrimas que já não conseguia nem queria disfarçar.
Ela desejava muito confortá-lo, naquela dor nada fácil de remexer no passado, mas achou melhor ficar sossegada no seu canto e esperar para continuar a ouvi-lo.
─ Passei anos com a imagem dela na mente e o meu amor por ela no meu coração destroçado. Fechei-me na minha dor. Há uns meses encontrei alguém que, a pouco e pouco, sem eu notar, foi introduzindo paz e harmonia no meu coração.
Eduardo descreveu, pormenorizadamente, como tinha conhecido Luísa e se tinha apaixonado por ela.
─ Já não aguentava viver sozinho muito mais tempo! ─ acrescentou.
─ Como eu te compreendo meu amigo, a solidão é um sentimento que não se partilha, e por isso dói, dói, tão absurdamente que faz ferida, que marca, que cansa de doer...
─ Aqui tens a minha história. Falo aqui dos momentos vividos e guardados no mais profundo esconderijo deste relicário a que chamamos coração. Finalmente encontrei o meu equilibro com um sorriso nos lábios.
─ Tocou-me profundamente a tua narrativa; um dia te contarei a minha que também não foi fácil.
─ Vamos então dormir, daqui a pouco amanhecerá e eu tenho vários assuntos a resolver.
─ Sim vamos então. Obrigada por me confiares a tua alma.
Despediram-se com um beijo no rosto e cada qual foi para o seu quarto.

Amar é sempre possível, mesmo que o passado tenha sido doloroso.

Continua...