Virtual Realidade

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Friday, June 15, 2007

Virtual Realidade Parte 90


Durante o jantar falaram dos respectivos trabalhos e da escola do André.
A caldeirada de peixe estava excelente e Eduardo não se coibiu de a elogiar longamente. O André, que não apreciava a ementa, teve direito a um bife e a um ovo estrelado, que comeu antes de toda a gente, e despediu-se para se ir deitar.

─ Agora, se me dão licença, tenho de ir cumprir uma promessa junto da vossa filha. ─ disse Eduardo a sorrir, levantando-se da mesa, no fim da refeição.
─ Promessa, que promessa?! ─ perguntou Pedro intrigado.
─ Prometi ler-lhe uma história para ela adormecer.
─ Ah! Tu estraga-la com mimos, mas vai lá então. Uma promessa é uma promessa!
─ E ainda para mais feita a uma criança…e os mimos nunca fizeram mal a ninguém. Mal faz a falta deles. ─ acrescentou Eduardo sentenciosamente.
Quando entrou no quarto da Inês e se sentou na beira da cama, a primeira coisa que ela quis saber foi se ele tinha perguntado aos pais se a deixavam ir com ele nas férias grandes.
─ Não, ainda não perguntei. Tem calma que temos tempo.
─ Mas se eu souber que eles deixam terei mais vontade de comer melhor.
─ Ai ele é isso, minha marota! ─ retorquiu Eduardo beliscando-a suavemente na face ─ Espera um pouco que vou já perguntar-lhes. Mas que pestinha tu me saíste! ─ acrescentou a brincar.
─ Já vens?! Adormeceu depressa! ─ admirou-se Teresa quando viu Eduardo aparecer na cozinha, onde apenas ela se encontrava já.
─ Não, ainda está acordada, mas pediu-me para vos vir perguntar uma coisa.
Pedro, ouvindo falar, regressou à cozinha para saber o que se passava. Eduardo introduziu o assunto, colocou a questão e retirou-se de novo para junto da Inês.
─ Então?... ─ foi a pergunta ansiosa da menina, ao ver que ele demorava a começar a falar.
Eduardo sentou-se ao pé dela, olhou-a nos olhos a sorrir e disse:
─ Trago boas notícias: eles deixam!
Inês pendurou-se ao pescoço do tio Edu e beijou-o na face.
─ És o melhor amigo do mundo!
─ Vamos à história?
─ Vamos. ─ respondeu Inês dando-lhe um livro para as mãos. ─ Quero que me leias a da Cinderela. ─ pediu.
Eduardo sorriu perante o pedido tão infantil para a idade dela, mas entendeu-o e intimamente notou que afinal a sua Inês era ainda uma criança, apesar da vontade que tinha de crescer rapidamente.
─ Deita-te, fecha os olhos, deixa os ouvidos abertos e começa a sonhar…
A história não ia a meio quando Eduardo reparou que a sua Inês já dormia repousadamente com um ténue sorriso nos lábios. Depositou o livro na mesinha de cabeceira, aconchegou-lhe os cobertores com suavidade e, silenciosamente, retirou-se do quarto apagando a luz.
De volta para junto do Pedro e da mulher, Eduardo encontrou-os sentados na sala de estar, com a televisão ligada, atentos às últimas notícias das consequências do referendo sobre a despenalização do aborto, realizado no domingo anterior.
─ Os miúdos não te deixam em paz. ─ referiu Pedro
─ E onde poderei ter mais paz do que junto deles?
─ Tens muito jeito e paciência para as crianças. Nunca nos explicaste de onde te vem isso. ─ disse Teresa.
­Eduardo limitou-se a sorrir, olhando os gladíolos numa jarra sobre a mesinha da sala de estar.
─ São lindíssimos os teus gladíolos e como ficam bem aqui! Tiveste uma excelente lembrança. Adorei! ─ disse Teresa ao notar que Eduardo olhava com admiração para as flores que tinha trazido para ela.
─ Ainda bem que gostaste.
─ Pena amanhã ser dia de trabalho, que poderíamos ficar um bom pedaço a conversar. ─ lamentou Pedro.
─ Mesmo assim podemos falar um pouco, caso o Eduardo não se importe, claro. ─ sugeriu Teresa.
─ De qualquer modo temos de falar de um assunto…
─ Relativo ao caso? ─ interrompeu Pedro.
─ Relacionado, sim: a Sara gostaria de vos conhecer antes de mais nada.
─ Parece-nos uma excelente ideia! Eu e a Teresa já tínhamos comentado entre nós que estamos a confiar na tua amiga sem sequer a termos visto nunca e que é apenas porque confiamos em ti; e tu afinal também não a conheces pessoalmente.
­─ Pois não e, por essas razões todas, eu fiz-lhe a sugestão e ela concordou.
─ E para quando seria isso?
─ Se vocês estiverem livres no próximo sábado…
─ Não temos nada combinado, pois não Pedro? ─ perguntou Teresa, dirigindo-se ao marido.
─ Nada. Por mim parece-me bem. E como vai ser?
─ Ela viria cá. E pode vir já no sábado.
─ Quer dizer que vocês já tinham tudo meio planeado?!
─ Sim, só dependia da vossa disponibilidade.
─ Então confirma com ela e diz-lhe que venha para o almoço cá em casa. ─ disse Teresa.
─ Ok! Acho que vamos todos gostar de a conhecer.
─ Como é ela? ─ perguntou Pedro a sorrir.
─ Fisicamente? Nunca a vi, mas trouxe aqui, num CD, umas fotos que ela me enviou e que ainda nem vi. Lembrei-me de trazer para vos mostrar.
A pergunta do Pedro era intencional, mas Eduardo respondeu num tom inocente como se não tivesse notado que o amigo estava a entrar com ele.
─ Não acredito que não tenhas tido curiosidade. ─ brincava Pedro.
─ Mas é verdade! Quando ela mas enviou eu estava quase a dormir em cima do teclado. A partir de certa hora deixo de funcionar.
─ Ah, ah, ah!
─ Podemos ver no computador? ─ perguntou Eduardo.
─ Vamos lá, já agora!
─ Homens! ─ sorriu Teresa, que não era ciumenta.
Eram duas: uma de corpo inteiro e outra tipo passe.
─ Uma figura bonita. ─ declarou Eduardo.
─ Deve ser mais ou menos da minha idade. ─ notou Teresa.
─ Tens sorte com as mulheres que conheces na net! ─ disse Pedro, dando uma leve palmada nas costas do amigo. Mas Eduardo não reagiu; olhava absorto, como se tivesse sido transportado para muito longe dali.
─ O que tens? Acorda homem! ─ perguntou Pedro abanando-o.
─ Nada, nada! É que de repente pareceu-me alguém que eu conheci em tempos, embora mais velha agora.
─ A Mariana? ─ perguntou Teresa.
─ Sim, parece-me ver traços da Mariana no rosto da Sara, mas é impossível. Uma simples coincidência ou ilusão minha; e, depois de todos estes anos, como estará a Mariana?!
─ Pois é, não penses nisso! ─ animou Teresa, notando o semblante melancólico do amigo.
─ O que achaste sobre o resultado do referendo? ─ perguntou Pedro para mudar de assunto.
─ Achei muito bem! ─ aplaudiu Eduardo. ─ Agora está aberto o caminho para que o aborto deixe de existir.
─ O clandestino, queres tu dizer! ─ Acudiu Pedro.
Teresa que era católica ficou calada.
─ Não, todo o aborto.
─ Como assim?!
─ O aborto é um mal, muitas vezes necessário do ponto de vista de quem o pratica. E é muito fácil fingir que não existe, penalizando-o como crime. As consciências bem pensantes ficam tranquilas e deixam a culpa para o íntimo de cada um, castigando quem não cumprir. Ou seja, o papel de bons fica assegurado e podem dormir felizes, porque são contra e fizeram «tudo» para o impedir. Não podem ser acusados de coisa alguma. A lei está lá e foram eles que a fizeram. Não precisam de fazer mais nada. Estando proibido está tudo bem e a vida humana absolutamente defendida.
─ Estou a ver…
─ Mas isso era antes porque agora a música passará a ser outra: se eram honestos nas suas intenções, nas explicações que davam para serem contra, têm agora forma de o provar. Defender a Vida Humana, não consiste em proibir o aborto, mas em criar as condições sociais, económicas e pessoais para que todas as vidas possam nascer e viver de forma digna e sem constrangimentos. Por isso também os «contra», honestos e sinceros, devem ter razões para rejubilarem com o resultado; e se não fizerem nada para evitar a prática do aborto, as suas consciências acusá-los-ão irremediavelmente de co-responsáveis.
─ É um ponto de vista radical, mas, pensando bem, muito acertado! É isso mesmo!
­─ Também acho. ─ anuiu Teresa. ─ nunca tinha visto o problema desse modo. Se me tens dito antes teria votado a favor.
─ A não ser aqueles cuja verdadeira intenção não é a defesa da vida humana…
Eduardo sorriu ao notar que tinha tocado, indirecta e inadvertidamente, num ponto sensível de Teresa, sem que ela tivesse sentido que nas últimas palavras dele havia a intenção de a atingir.
─ Teresa, peço desculpa, mas eu não estava a pensar em ti, nem em ninguém em particular, quando disse aquilo.
─ Eu sei, Eduardo! A aplicação à minha vida daquilo que disseres fica por minha conta e risco. Não te preocupes e fala à vontade. Da outra vez fui impulsiva, irreflectida, e quase me ia zangando contigo esquecendo, por orgulho e vaidade, anos de amizade e que jamais virias aqui com a intenção de nos fazer acusações; e que um amigo como tu só falaria no sentido de nos ajudar. Quem te deve um pedido de desculpas sou eu.
Depois de uns segundos de ensurdecedor silêncio, Pedro interveio reconciliador:
─ Vá, deixem-se disso! Conhecemo-nos há demasiado tempo para haver qualquer sombra de desconfiança entre nós. Está tudo desculpado! Continua Eduardo, por favor! Se não é a defesa da vida humana é o quê?
─ Levaria algum tempo a explicar, mas amanhã é dia de trabalho e já não é nada cedo.─ Tens razão! A gente até se esquece das horas.

Continua...