Virtual Realidade

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Friday, May 18, 2007

Virtual Realidade Parte 86


Cerca de duas semanas para o Natal. O domingo acordou frio, mas luminoso, e a última neve, caída dias antes, já havia desaparecido. Na Vuelta del Catillo, as árvores, despidas da folhagem estival, deixavam penetrar o sol até ao relvado, onde duas pegas procuravam minhocas para o desjejum do dia.
Quando Francisco ali chegou, equipado para correr, já dois ou três grupos de atletas improvisados, madrugadores, evoluíam naquele pulmão verde do centro da cidade de Pamplona. Sozinho, começou a fazer o aquecimento antes de iniciar o percurso. Alguns exercícios de braços e de pernas e algumas flexões depois, começou a correr. Um casal de meia-idade, em fato de treino, fazia o percurso em sentido contrário. Acelerou um pouco e, completada a segunda volta, apanhou um grupo de jovens, num ritmo que lhe convinha e deixou-se seguir uns metros atrás. Enquanto corria, o pensamento saltitava-lhe entre a mãe feliz com o Juan, a rapariga do comboio e a do mirc. Quanto mais pensava nestas duas, mais lhe parecia que eram uma única e a mesma pessoa. As palavras que trocara com a segunda, no IRC, pareciam encaixar perfeitamente na imagem que tinha da primeira, mesmo tendo falado com ela apenas aquela vez no comboio. Mas se assim era, isso queria dizer que a atiR não estava a estudar em Lisboa, mas sim ali, naquela cidade de Pamplona, bem perto dele. Ele também lhe tinha mentido dizendo que vivia em Coimbra. De qualquer modo a Rita devia estar perto, mas onde e como a encontrar? Os dias de semana, completamente preenchidos com o trabalho, não lhe permitiam passear pelo campo universitário, em tentativas esperançosas mas muito incertas de a encontrar. E a «siesta» mal dava para almoçar e descansar um pouco. “Porque é que ela nunca me ligou? Porque é que eu, tão burro, não lhe pedi o contacto?”
Entretanto outros atletas iam aparecendo para começar o seu treino matinal. Raparigas também. Duas eram colegas, estudantes de medicina, de nacionalidades diferentes, mas amigas de dois meses, e costumavam treinar juntas sempre que podiam. Partilhavam o mesmo quarto na residência universitária. Correndo em sentido inverso, cruzaram-se várias vezes com Francisco sem que este reparasse muito nelas. Ele com um boné de pala comprida na cabeça, enterrado até os olhos por causa do sol, também não dava muito nas vistas.
A meio das voltas previstas, Francisco inverteu o sentido da corrida, como habitualmente fazia quando ali ia com o Juan. O grupo que tinha seguido já terminara o treino e ele ia agora sozinho. Pouco depois apanhava as duas amigas que tinham, naturalmente, um ritmo mais lento do que ele, e acompanhou-as a meia dúzia de metros de distância durante algum tempo, abrandando o próprio ritmo. Falavam nitidamente o castelhano; ele percebeu que uma delas tinha mais dificuldade na língua, principalmente na conjugação verbal, e que a outra a corrigia de vez em quando e ambas riam muito dos erros. Francisco ouvia o que elas diziam e sorria intimamente.
O ritmo das duas tagarelas era bastante baixo e Francisco, achando que não tinha o direito de lhes escutar a conversa, nem teria para ele o mínimo interesse, acelerou o passo e deixou-as ficar para trás. Daí a pouco voltava a estar nas costas delas e, quando já se preparava para as ultrapassar de novo, apanhou esta frase que uma delas dirigia à outra:
«O Juan foi passar o fim-de-semana a San Sebastian com a namorada.»
“ Não podem estar a falar da minha mãe e do Juan que eu conheço; mas outro Juan ter ido passar este mesmo fim-de-semana, na mesma cidade e com a namorada, é demasiada coincidência!” Francisco retardou o passo, e acompanhou-as a uma distância que lhe permitisse ouvir o que diziam.
A outra perguntou:
─ Já a conheceste pessoalmente?»
─ Não. Talvez a venha a conhecer durante esta semana. Mas já sei o nome do amigo do Juan.
─ Ah sim?! E qual é?
─ Francisco. E a mãe, Mariana.
Ao ouvir isto, Francisco ficou estupefacto. Já não tinha dúvidas de que aquele breve diálogo que acabara de ouvir tinha tudo a ver consigo próprio. Mas quem seriam aquelas duas que pareciam saber tanto numa matéria que lhe era tão próxima?
“ Só há uma maneira de o saber! ─ pensou. Acelerou o passo e, colocando-se ao lado das duas, olhou para elas e sorriu.
─ Hola! ─ disse, levando a mão à pala do boné e levantando-o um pouco.
─ Hola ─ responderam as duas ao mesmo tempo, olhando lateralmente para ele e sorrindo.
Francisco notou na expressão da mais afastada um ar de extrema surpresa. Rita mal acabara de ouvir o nome de Francisco, via-o aparecer ali ao lado, assim, de repente, como se o facto de a amiga o ter pronunciado fosse a causa desse súbito e inesperado aparecimento. Com uma fita em volta da cabeça, cingindo-lhe os longos cabelos negros, Francisco não a reconheceu.
Manteve-se a correr ao lado delas e Emília, a quem Rita acotovelava a querer comunicar-lhe que o conhecia, disse em castelhano correcto:
─ Também gostas de correr. Vens para aqui muitas vezes?
─ Sim. Duas vezes por semana, excepto se o trabalho não mo permitir.
Enquanto dizia isto, Francisco não esquecia o diálogo que tinha ouvido antes e tentava arranjar rapidamente uma maneira de o abordar.
─ Posso acompanhar-vos? ─ perguntou.
─ Claro que sim! ─ Rita permanecia calada e era Emília quem fazia a despesa do diálogo.
─ Estou quase a acabar o meu treino.
─ Nós também.
─ Eu trabalho aqui em Pamplona e vocês?
─ Estudamos na faculdade de medicina.
─ E são de cá?
─ Não.
Francisco, decidido a descobrir quem elas eram, perguntou sorrindo:
─ Eu vinha atrás de vocês quando ouvi pronunciar o meu nome. Alguma me conhece?
Rita olhava para ele, mas não se acusava. Ainda sob o efeito da surpresa, queria que fosse ele a reconhecê-la primeiro.
─ Eu não! Devia? ─ respondeu Emília. ─ Tu conhece-lo? ─ perguntou a sorrir, dirigindo-se à amiga.
Instintivamente, Rita limpou o suor da testa com as costas da mão e não respondeu. Já tinha percebido que ele não a reconhecera ou até a teria esquecido.
─ Só queria saber se, por acaso, sou o Francisco de que falavam há pouco.
─ E como é que podemos saber isso?
─ Vejamos… primeiro peço desculpa de ter escutado a vossa conversa, mas já vão entender porque o fiz. O meu nome é Francisco, a minha mãe chama-se Mariana, o meu amigo chama-se Juan e foram os dois passar este fim-de-semana a San Sebastian. Não era disso que falavam?
Pararam de correr e Emília, estupefacta, pôs-se na defesa:
─ Mas… Olha lá, isso não é apenas um pretexto para meteres conversa? É muito atrevimento teres vindo a escutar-nos e agora aproveitares-te disso.
─ Mas é verdade o que eu disse! Posso prová-lo.
A expressão de Francisco era tão convincente que Emília estava em acreditar, mas pediu ajuda à amiga:
─ O que achas, Rita?
─ Rita?!!! ─ ao ouvir aquele nome, Francisco aproximou-se dela olhando-a de frente, mas a fita no cabelo e a cor avermelhada do rosto, coberto de transpiração, não o esclareceram de imediato e foi Emília quem respondeu:
─ Sim, Rita é o nome da minha amiga. Ela é portuguesa e eu sou argentina. E tu és o quê?
Francisco e Rita continuavam a olhar um para o outro, esta esperando o momento em que seria, finalmente, reconhecida, e ele perguntou:
─ Já nos vimos alguma vez?
─ Já, mas tu não te lembras ou não me reconheces. ─ enquanto falava, Rita desatava a fita e deixava pender os cabelos sobre os ombros. E só então Francisco a reconheceu e começou a falar em português:
─ Mas és mesmo a Rita daquele comboio até Vitória? Mas que bela surpresa! Até custa a acreditar!
─ Sim, sou eu. Reconheci-te logo.
─ Com os cabelos amarrados não te conseguiria reconhecer.
─ Eu percebi isso.
─ Será que não temos algumas coisas para falar?
─ Se tu achas que sim, eu também.
─ Deixa-me abraçar-te, mesmo transpirados! ─ pediu Francisco, agarrando-se a ela sem esperar pela resposta.
Emília não estava a perceber nada do que se passava. Aquilo era-lhe tanto mais estranho, quanto via a amiga entregar-se àquele abraço dado por um desconhecido, sem esboçar o mínimo protesto.
─ Alguém me quer contar o que se passa aqui?
Mas já Francisco levava Rita pela mão para um banco do jardim. Emília seguiu atrás deles e ficou de pé, parada a dois passos de distância, com um olhar profundamente admirado e interrogativo.
Continua...