Virtual Realidade

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Friday, April 21, 2006

Virtual Realidade Parte 32


Os dias diminuíam e Eduardo dividia as horas de lazer entre a Internet e a preparação da terra, na pequena horta que possuía, para as culturas do Outono.
Todos os dias, pela manhã, antes de sair para o trabalho, ia cavar um pouco ─ em Novembro semearia as favas, plantaria as couves e os morangueiros ─ Descalço, adorava sentir a macieza da terra solta e leve na nudez dos pés desprotegidos. Depois o duche frio e a saída para o emprego.
Ao fim da tarde, regressado a casa, preparava o jantar, jantava e ia ao computador navegar um pouco, consultando sites, lendo e escrevendo e-mails e falando com pessoas no IRC.
Desse modo encontrara um dia Luísa, carente, sensível e carinhosa que se apaixonara por ele ao fim de algum tempo e convívio on-line. Achava-a bonita e simpática, meiga, mas não estava seguro de gostar dela ao ponto de se lhe unir. Precisaria de a conhecer pessoalmente. A vida de solitário começava a pesar, já não era um jovem, e sentia que precisava de alguém perto dele. Mariana era uma doce recordação distante. “Como seria a sua vida? Onde viveria?”─ Pensava ─ “Não tenho a certeza de ainda a amar; e depois, aonde me leva isso? Não posso estar sempre só. Tenho de me decidir.”
Com estes pensamentos dirigiu-se ao computador. Tinha acabado de jantar havia poucos minutos. A primeira pessoa que encontrou no mirc foi a Albertina, uma velha amiga, que veio logo ter com ele em pvt:
─ Olá! Há quanto tempo! *
─ Olá Tininha! É verdade.Está tudo bem contigo? **
─ Sim, e tu?
─ Vou indo.
─ Não pareces muito animado. O que há de novo?
─ Nada, eu estou bem, mas fico revoltado com certas coisas.
─ Pois também eu. Mas queres contar?
─ Tu não és católica?
─ Sim sou, mas não muito praticante. Porquê?
─ Então amiga, não devias de estar aqui a teclar comigo.
─ Ora essa, porquê?!!! Tu és um dos meus melhores amigos e gosto muito de falar contigo.
─ Obrigado, mas tu, sendo católica, não devias andar na Internet nem ler jornais ou ver televisão.
─ Só podes estar a gozar comigo! Isso é alguma piada?
─ Infelizmente não. É que parece que foi actualizada a lista daquilo que é considerado pecado pelo Vaticano. As últimas actualizações acrescentam à lista dos pecados ler jornais, ver televisão e navegar na Internet.
─ Isso não cabe na cabeça de ninguém! Só pode ser invenção de alguma mente estúpida.
─ Vou passar-te a noticia que saiu no Público on-line há 3 dias para tu avaliares por ti mesma:

«Passar muitas horas a ver televisão, a navegar na Internet ou a ler jornais são actividades consideradas pelo Vaticano como "novos pecados", de acordo com a nova orientação enunciada pelo penitenciário-mor, o cardeal Francis Stafford.
O delegado do Papa para a cerimónia do rito da reconciliação (uma celebração católica tradicional em Roma retomada este ano) apresentou um longo elenco de perguntas a que os fiéis devem responder, em exame de consciência, antes de se aproximarem do sacramento da penitência.Entre essas perguntas coloca-se a questão relativa à forma como se passa o tempo, comparando-se o investimento nos media (televisão, Internet e jornais) com o tempo despendido a "meditar e a ler a Sagrada Escritura".De acordo com o Vaticano, passar muito tempo a ler jornais, a ver televisão ou a navegar na Internet diminui a dedicação à fé cristã, pelo que aquelas actividades devem ser consideradas como dos "novos pecados».

─ Leste tudo?
─ Espera um pouco.
─ Ok.
─ Já li e estou pasmada com tanta estupidez.
─ Pelo contrário! Acredita que eles sabem muito bem o que fazem.
─ Achas? Eu, se eles continuarem assim, vou deixar de lhes ligar completamente. Já começo a não acreditar em nada.
─ Penso que essa é a única atitude racional a tomar. Os média são um perigo para todos os sistemas de pensamento rígidos e fechados. As ideias começam a circular cada vez mais pelo mundo entre gentes de culturas muito diferentes e isso pode fazer com que comecemos a pensar pelas nossas cabeças. A igreja não quer, nunca quis, que as pessoas pensem mas que aceitem cegamente aquilo que ela diz como verdade absoluta, sem discussão possível.
O material relacionado com a sexualidade que circula abundantemente nos media e a que os mais novos têm acesso, também preocupa muito as igrejas porque eles sabem que, se a sexualidade for libertada das amarras de milhares de anos, a humanidade se libertará de toda a irracionalidade e deixará de acreditar em misticismos.
─ Como assim?! Essa não percebi!
─ Repara como toda a noção de pecado tem por base a sexualidade. É na educação das crianças, sexualmente repressiva, que as igrejas apoiam o seu domínio sobre o mundo há muitos séculos. O que fazemos às nossas crianças quando as castigamos pelas manifestações naturais da sua sexualidade é o maior crime que contra elas cometemos.
Com o tipo de educação que lhes ministramos, as crianças começam a ter medo do mundo, a perder a sua naturalidade e inocência, a serem incapazes mais tarde de pensar por si próprias, sem espírito crítico, abertas a todas as influências exteriores, as boas e as más. Essa ideia de sexualidade coisa proibida e suja, incutida na infância, dá origem à angústia que a maioria das pessoas arrasta pela vida fora, que as torna infelizes e que, sendo insuportável para algumas, as leva ao suicídio. A igreja vem nesta altura trazer o lenitivo para essa profunda angústia existencial, e assim tem sempre um exército infindável de clientes que sustentam e justificam a sua existência enquanto organização que ampara uma humanidade cheia de carências afectivas originadas na tal educação negadora da sexualidade infantil. Ou seja, ela dá apoio aos coxos depois de contribuir para que eles fiquem sem as pernas.
A igreja conhece estes mecanismos há muito tempo e explora-os em seu proveito. São esses os mecanismos da obediência que levam mais tarde os homens a precisarem de chefes que os guiem ─ mesmo que esses chefes sejam hitlers ─ de igrejas que lhes digam como se comportar, de deuses que lhes dêem o apoio moral para conseguirem sobreviver psicologicamente. É assim que as religiões dominam as sociedades onde estão inseridas transformando o rebanho em carneirinhos obedientes e cegos, prontos para o sacrifício de todas as páscoas.
Achas que Hitler teria feito o que fez se não tivesse contado com a obediência das massas? Ele sozinho não faria nada. A culpa do que aconteceu não é dele apenas. Como é que as pessoas, neste caso os soldados, puderam seguir ordens para fazer o que fizeram?
E os actuais homens-bomba? Como se compreende que exista gente capaz de proceder daquele modo?
Estes são apenas dois exemplos. Dá que pensar, não dá?
─ Lá isso é verdade! Mas eu acredito em Deus. E Jesus existiu e a vida dele foi exemplar.
─ Em que deus acreditas tu? Voltaire dizia: «Eu não acredito no deus que os homens criaram, mas acredito no Deus que criou os homens». Acho que a existência ou não de um deus se deve resumir a isto.
─ Mas não é a mesma coisa?
─ Não, não é! Penso que há algo que criou a vida: uma energia, uma força natural. A certa altura da história da humanidade alguém descobriu que castrando psicologicamente as pessoas se podia facilmente dominá-las. Já se fazia isso fisicamente com os animais a fim de os tornar dóceis para o trabalho. A partir daí era preciso inventar algo que compensasse a infelicidade humana que resultava dessa castração mas que não interferisse com a submissão e que, pelo contrário, a ajudasse a manter. Estava criada a ideia de um deus que facilmente foi e continua a ser aceite por todo o lado. Um deus dominador e também protector como convinha.
─ Oh pá, tu dizes cada coisa!
─ E ainda digo mais…Vê como a igreja encara a sexualidade e o aborto e como sempre tratou as mulheres ao longo da história, porque elas eram as portadoras do pecado e levariam a humanidade à perdição.
─ Tens razão. Eu sei isso.
─ Outra coisa…Um dos grandes problemas do nosso mundo é, todos sabemos isso, a droga. Inventam-se soluções para ele: maior repressão policial, leis mais rígidas, ou, pelo contrário, mais liberalização?
Não convém que se perceba que o consumo de drogas tem a ver com a tal angústia profunda originada no tipo de educação castradora que temos e que muitos dos mais novos não procuram nas religiões a compensação da sua infelicidade…Alguma vez ouviste algum expert do assunto falar nisso na TV?
Acho que tens matéria aí para perceber porque estou assim.
─ Sim, e em muitas coisas talvez estejas certo.
─ Tina, perdoa-me por te estar a fazer pecar em duplicado! Acho que por agora já disse tudo.
─ ?????????????
─ Por um lado obrigo-te a ler heresias e por outro é na Internet…lol
─ Só tu para me fazeres rir!
─ Tenho muito sentido de humor, não tenho? Mas tudo aquilo que eu disse é bem verdade. Basta leres a História Universal, junta a isso um pouco de conhecimento de como as pessoas funcionam, e pensa, pensa muito! Procura ver a coisa de vários ângulos…se tiveres o coração liberto talvez chegues às mesmas conclusões.
─ Talvez…mas agora tenho de ir dormir. Até amanhã. Um beijo.
─ Outro para ti. Dorme bem. Também vou.
Eduardo desligou lembrando-se de que tinha trocado com Mariana todas estas ideias e que ela pensava do mesmo modo que ele.
Mariana tinha chegado a elas de um modo natural, porque sentia em si mesma que só podia ser essa a verdade. Eduardo porque tinha lido muito e chegado à conclusão de que, racionalmente, só aquelas verdades conseguiam satisfazer a sua compreensão.

Continua...