Virtual Realidade

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Location: Portugal

Friday, July 21, 2006

Virtual Realidade Parte 45


Foi um fim de dia de muita actividade on-line e Eduardo deitou-se mais tarde do que lhe era habitual. O seu corpo cansado ressentiu-se da estranheza daquela hora tardia a que não estava habituado a deitar-se e recusou-se a adormecer de imediato, como era hábito, quedando-se pensativo, de olhos fitos no tecto do quarto, mergulhado na semi-claridade de uma lâmpada de cabeceira cuja intensidade luminosa era regulada por um reóstato.
A descoberta que tinha feito nas últimas horas de que amava Luísa punha-lhe na alma uma doce sensação de paz, mas por outro lado dificultava-lhe também o acto de se entregar ao esquecimento de um sono recuperador.
Ainda lhe custava a acreditar que tinha esquecido, sem disso se aperceber, o primeiro e grande amor da sua vida: Mariana.
Que estranhas e ignoradas alterações se teriam produzido na sua alma, tantos anos saudosa, vivendo da recordação daquele amor, esperando sempre que um dia ela voltaria a aparecer-lhe para não mais se separarem, para que aquele esquecimento desse lugar a um outro amor, ou talvez o mesmo, quem sabe, apenas mudando de objecto?
Só amamos e deixamos de amar em tempos separados da nossa existência porque vamos mudando sempre um pouco todos os dias; e, apesar da memória que lhe dizia que tinha sido ele quem um dia amou Mariana, a verdade é que agora sentia que era outro, o Eduardo que amava Luísa. Mariana tinha sido amada por um Eduardo que já não existia.
O catolicismo ao impor uma união, casamento, para toda a vida mais não faz do que matar o amor, sentimento sublime e divino. “O que deus uniu jamais o homem deve separar”, mas deus une pelos corações e não por papéis com assinaturas. Se o amor acaba entre um homem e uma mulher, foi deus então que os separou.
Eduardo, embora com uma base cultural cristã, era uma pessoa profundamente racional que se conhecia muito bem, quase nunca lhe escapando as explicações das suas transformações interiores nem as da origem dos seus mais íntimos pensamentos. Dificilmente alguma coisa lhe entrava no espírito sem passar pelo filtro apertado da sua razão. Por vezes levava dias a pensar sobre um assunto, tentando vê-lo de todos os ângulos possíveis, explorando todas as suas possibilidades de veracidade, até o deixar entrar e fazer dele mais um elemento da sua base de dados. Era assim por natureza e porque sabia que, num mundo de enganos, muitas vezes a publicidade tinha força de verdade. Ele bem via como as pessoas, mesmo as mais convencidas da sua capacidade de discernimento, da sua lucidez, seguras de si, se deixavam enredar alegremente nas teias da informação de que estavam rodeadas, como se a escolha tivesse sido feita por elas e não imposta de fora, fazendo assim com que a publicidade consiga vender todo um rol de coisas inúteis. Sabia porque as pessoas eram assim. Este amor, porém, tinha entrado rastejando suavemente, escapando a todo o controle, sem passaporte nem aviso e teimava em iludir qualquer tentativa de entendimento lógico, se em matéria de amor alguma lógica é chamada a intervir.
Mariana tinha saído sorrateiramente da sua alma sem aviso prévio, sem se despedir, mais uma vez fugindo sem deixar rasto. Porque quando agora tentava aplicar a Mariana esse amor que sentia intenso no seu coração, era a imagem de Luísa que se impunha, nítida, como a materialização desse novo sentimento.
Deitado na cama tentava recordar o rosto da Mariana do tempo em que se enamorou dela, mas este surgia-lhe tão diluído, mais esfumado do que os móveis flutuando na penumbra do seu quarto, que os seus traços esbatidos, como numa fotografia muito tremida, apareciam a tal ponto indistintos que já não a reconhecia mais. E então era sempre a imagem daquela foto que Luísa um dia lhe tinha enviado por DCC que se exibia com toda a nitidez de uma realidade objectiva.

Ao longo dos vários anos de IRC tinha «conhecido» várias mulheres, algumas tendo-lhe enviado a fotografia, talvez mais bonitas do que Luísa, doces e meigas também, inteligentes e cultas, mas sem que nenhuma o tivesse «tocado» tão profundamente.
Era verdade que nunca dizia nada com a intenção de agradar ou de algum dia vir a ter com elas outro tipo de relacionamento além de uma estrita amizade virtual, como era convencionado chamar. Mas também era verdade que algumas delas «conhecendo-o» depois de algum tempo de convívio on-line tinha evidenciado por ele outro interesse para além da simples amizade. Quando começavam a perceber que Eduardo não avançava nesse sentido e que aprecia até fazer-se desentendido, desistiam até de lhe voltar a aparecer.
Nessa noite de sono tardio, imóvel e com o cérebro em ebulição, recordava tudo aquilo com um misto de saudade e amargura pelas mulheres que o poderiam ter amado e a quem poderia ter correspondido e pensava: “Como somos insignificantes perante a enorme dimensão das nossas possibilidades de vida, perante os milhões de opções que se nos deparam no decurso da nossa existência. As escolhas que fazemos, as que o nosso coração faz, nem sempre as mais acertadas em cada caso, são aquelas que acabam por determinar o nosso destino. Seguir uma significa, automaticamente, excluir as outras todas da nossa vida. Não podemos vivê-las todas em outras tantas vidas paralelas.
Estes pensamentos davam-lhe uma profunda melancolia, um sentimento de impotência
perante a grandiosidade da vida comparada com a mediocridade do homem, melancolia que era também humildade.
“O que significa sermos livres afinal?”

Ana Lúcia era a sua recordação mais grata e o seu primeiro «conhecimento» através dos chats do IRC. Açorenha, trabalhando de secretária de direcção num empresa privada de importações e exportações em Lisboa, de onde comunicava pelo Mirc. Tinham teclado durante mais de dois anos, trocado muitas ideias e conhecimento mútuo; era em tudo o género de mulher por quem Eduardo se poderia apaixonar, a sua alma gémea de ideias e ideais semelhantes: gostavam de ler os mesmos livros, ver os mesmos filmes, ouvir as mesmas músicas. Tinham ideias muito iguais acerca das crianças e o respectivo modo de entender o mundo quase se sobrepunha. Mas pelo lado dele o amor não aconteceu e Ana despeitada e desiludida acabou por desaparecer.
Aproximadamente quatro anos mais tarde, ao procurar uns ficheiros que tinha guardado em CDs antigos, encontrou um endereço electrónico de Ana Lúcia e escreveu-lhe pelo Natal a perguntar o que era feito dela, se estava bem e a desejar-lhe boas festas.
Eduardo ficou profundamente comovido, poucos dias depois, quando viu ressurgir do fundo do tempo uma velha amizade que julgava morta e enterrada para sempre, através de um e-mail que Ana lhe enviou como resposta, desejando-lhe também um feliz Natal e dizendo que estava tudo bem com ela. Foi esse o último contacto que tiveram até esse momento em que o sono continuava ausente.
E desse modo Eduardo continuou a reviver na sua mente os últimos acontecimentos e a conversa com o Rui era um deles.
A respeito do Rui continuava retrospectivamente entre incrédulo e admirado: não era de prever de todo, para quem conhecia o Rui como ele conhecia, que o amigo desse à sua vida aquele rumo. Mas a vida por vezes surpreende até os próprios intervenientes.
“O outro amigo deles, o Pedro, já saberia de alguma coisa? Esqueci-me de perguntar ao Rui se já lhe tinha contado. Telefonarei ao Pedro e se ele souber de alguma coisa será o primeiro a manifestar-se” ─ Pensou Eduardo.
Havia duas semanas que não tinha notícias do Pedro nem dos filhos, André e Inês, que adorava. Aproveitaria para saber como eles estavam e se as aulas já tinham começado.
Mas era sempre a imagem de Luísa que regressava com a força de uma doce obsessão a dominar-lhe os pensamentos. Assim que ela regressasse de Espanha anunciar-lhe-ia a surpresa de a querer conhecer pessoalmente. Ela iria ficar feliz certamente, mas para Eduardo, declarar-lhe o seu amor iria depender de como corresse esse encontro, que uma vez admitido como possível ao seu espírito, acabou por se tornar inevitável e de realização premente. Ainda mais por não poder apontar uma data para a sua realização, uma vez que Luísa nem sequer sabia ainda quando regressaria a casa.

Continua...