Virtual Realidade

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Friday, November 09, 2007

Virtual Realidade Parte 110


Acordou com pressa de começar o dia, numa vontade sôfrega de abraçar o tempo. Aquela véspera de Natal ─ alegria de muitos, tristeza de outros, ira de alguns, indiferença de tantos ─ era, para ela, o começar de uma nova história. Deixou que o seu pensamento percorresse o rol de sensações e devaneios que lhe acudiam ao coração e o rodeavam de felicidade. O rosto de Eduardo apareceu-lhe envolto em alva nuvem, ainda aureolado de sonho, e Luísa sussurrou-lhe:
“Em ti eu permaneço e me perco, em êxtase. Contigo, não estou só!”
Queria-o muito, naquele momento, ao lado dela, numa enorme ânsia do seu carinho.
Daí a pouco ele chegaria com o pai e isso recordou-lhe o que havia para fazer.
Saltou da cama e abriu a janela do quarto de par em par, deixando que o ar frio da manhã entrasse para lhe dar os bons dias. Mentalmente respondeu-lhe. A inalação profunda do cheiro a terra molhada envolveu-a numa suave serenidade. Depois, num impulso irresistível, sem se lembrar de como estava nem do trabalho para fazer, correu para a porta da rua e abriu-a. Ia sair quando atrás de si uma voz doce perguntou admirada:
─ Mãezinha, onde vais descalça e de pijama?
─ Bom dia filhota! Ia à praia enquanto vocês dormiam.
─ Estamos em Dezembro, esqueceste? Calça-te e leva um agasalho!
─ Está bem, mamã! ­­─ respondeu a sorrir; depois séria: ─ Tens razão, vou vestir-me. Mas que tonta eu sou!
─ Posso acompanhar-te?
─ Claro, querida! É muito bom que venhas também! Elas ainda dormem?
─ Ainda. E eu quero ir contigo porque tenho saudades do meu mar. Ultimamente só tenho visto flocos de algodão.
Mãe e filha, cabelos soltos despenteados, saíram de casa, sorrateiramente, a caminho da praia.
─ Lembras-te Rita, quando eras criança, descermos tantas vezes este carreiro para irmos brincar as duas na areia molhada?
─ Claro que me lembro! Eu não tinha amigas da minha idade, aqui perto para brincar mas tu conseguias ser uma delas.
Tinham chegado às dunas e sentaram-se a contemplar o mar, continuando a percorrer o roteiro das recordações de um passado que tinha sido o meio em que Rita tinha crescido feliz.
─ Quando íamos a casa da avó a Leiria e brincavas com os teus primos, depois fazias um berreiro enorme porque não querias vir embora.
─ É verdade. Mas tu falavas muito comigo, com a tua voz suave, e eu acabava por aceitar.
─ O teu pai não achava que isso tivesse importância, mas eu lamentava ter de interromper a tua brincadeira, só que não tinha outro remédio.
─ Sabes o que me compensava desse desgosto?
─ Não.
─ Era, nesse dia à noite, vires para a minha cama. Eu acabava por adormecer feliz contigo a falar ao meu lado, a explicar-me tudo, mesmo o que eu, na altura, era incapaz de perceber. E tu sabias isso, mas continuavas a falar, a falar…
─ É verdade. Nunca deixava de te explicar, da maneira mais fácil que conseguisse, tudo aquilo que pusesse em causa a tua espontaneidade ou que, de algum modo, te pudesse causar sofrimento. Procurei sempre nunca ser um obstáculo aos teus desejos e, quando eles eram mal dirigidos, nunca me ouviste um não, uma proibição, uma ameaça de castigo. Aliás, o verbo castigar devia ser banido, em definitivo, como método de educação, como diz o Eduardo e eu concordo plenamente.
─ Também acho, mamã.
─ Eu conseguia sempre desviar a tua atenção de modo a que dirigisses alegremente a tua actividade para outros fins que não causassem prejuízo.
─ Eu lembro-me de alguns casos, mas o papá não era como tu: ralhava-me e eu tinha medo dele. Felizmente passava o dia fora de casa! Quando chegava eu ficava quietinha.
─ Pois, ele não tinha muita paciência para ti. Também chegava cansado do trabalho...
─ Talvez não tivesse muito jeito para crianças.
─ Não tinha. Mas também é preciso muita disponibilidade e outra coisa mais difícil que é despirmo-nos de ideias preconcebidas, daquilo que tradicionalmente nos é incutido sobre educação, e até de ideias religiosas profundamente erradas.
─ Eu entendo. E muito amor também.
─ Todos ou quase todos os pais amam os filhos, mas isso não é o bastante para conseguirem proceder bem para com eles. É fundamental ter sensibilidade e conhecimento de como funciona um ser humano, e, para além disso, estar disposto a suportar algumas dificuldades e dissabores, por causa de o meio em geral não estar muito aberto a aceitar comportamentos fora dos padrões estabelecidos.
─ Mas muitos pais amam os filhos de forma tão sufocante que mais parece uma doença.
─ É verdade! Também eles foram vítimas de uma educação errada. ─ Luísa fez uma pausa e ficou a pensar. Rita esperou sem a interromper.
─ Sabes o que estou a pensar? ─ continuou ela depois.
─ Não faço a mínima ideia.
─ Que depois da licenciatura te especializasses em algo relacionado com crianças.
─ Pediatria?
─ Mais Psicologia.
─ Não me desagrada de todo a ideia, mas ainda tenho de pensar.
─ A escolha é tua, filhota. Podias ajudar a resolver os problemas dos pais que procuram ajuda para educar os filhos.
─ E achas que teria alguma procura?
─ De inicio não. Toda a gente «sabe» educar os filhos e ninguém aceita conselhos nessa área. Mas depois, quando eles se tornam adolescentes e aparecem os problemas, erguem os olhos ao céu e perguntam que mal fizeram para terem filhos assim. Há que fazer alguma coisa para inverter a situação e em tudo é preciso pioneirismo. Alguém que puxe as coisas para diante no sentido certo.
─ Mamã, tu queres revolucionar o mundo? Não te conhecia essa veia! ─ exclamou Rita a sorrir. ─ Influência do Eduardo?
─ Também, mas eu tenho visto e ouvido tanta coisa… ─ respondeu Luísa suspirando.
─ Talvez tenhas razão. ─ assentiu Rita.
─ Claro que tenho! ─ respondeu a mãe, segura de si. Sentiste algum conflito entre ti e o meio na tua adolescência?
─ Acho que não. Sempre me senti bem dentro da minha pele. Tudo o que foste para mim me deu confiança e força interior bastantes para enfrentar o mundo. Nunca me senti constrangida, incapaz de agir racionalmente em qualquer lugar.
─ Essa força nasceu contigo. Apenas me limitei a não a abafar.
─ O efeito é o mesmo. Nunca entendi porque é que colegas meus, rapazes e raparigas, precisam de se embebedar ou tomar drogas para se divertirem, se eu nem nunca senti o apelo do tabaco. Tantas vezes que tentavam arrastar-me com eles e nunca fui. Eu achava muito estranho e até me custava a acreditar quando amigas me diziam que os pais eram uns chatos e que devíamos fazer tudo ao contrário do que eles mandavam.
­­─ Talvez os pais delas, mandassem… E, hás-de reparar, muitas pessoas que levam uma vida dita normal, tomam medicamentos para poderem aguentar as pressões. E a quantidade, cada vez maior, de gente que sofre de depressão…
­─ Sim, já tenho notado isso. Agora que consigo entender melhor o que foste para mim, vejo que nunca me impuseste regras e deixaste sempre que fosse a minha natureza a determinar os meus actos.
─ E, agora que entendes melhor, achas que procedi mal?
─ Muito pelo contrário, mãezinha! Acho que foste a melhor mãe do mundo.
­─ Oxalá, consigas ser ainda melhor para os teus filhos. Se não respeitares as necessidades deles, os pequenos gestos e actos, movimentos e atitudes e não os souberes compreender, ajudar e apoiar, desde o nascimento, deixando que se expandam sem constrangimentos de nenhuma espécie em direcção à alegria de viver, estarás a criar seres humanos infelizes que procurarão nas más companhias e em inúmeros vícios a compensação. Porque a procura do prazer é vital para qualquer ser vivo. E os únicos prazeres indispensáveis ao nosso equilíbrio psíquico e fisiológico, e que nos permitem funcionar individual e socialmente bem, sem necessitarmos de leis externas, são os que advêm do cumprimento das leis da natureza.
─ Eu entendo, mamã! Mas conto também com a tua ajuda, quando necessitar. Quero, pelo menos, fazer tão bem como tu.
Levantaram-se e caminharam pela beira-mar de braço dado, olhando aquela imensidão de água em várias tonalidades. A brisa salgada perfumava o ar e as gaivotas revolteavam grasnando melancolicamente.
─ Vou adorar ajudar a criar os meus netos.
─ Se não estiveres muito ocupada a cuidar do Eduardo… ─ brincou Rita.
─ Aquilo que eu disse, eram palavras dele também. O Eduardo adora crianças e vai tratar como netos, os teus filhos.
─ Quem gosta e entende assim de crianças não pode ser má pessoa.
─ Tenho a certeza de que vais gostar logo dele.
─ Já começo a gostar.
─ Ele é bastante falador e gosta de brincar. Adora uma piada inteligente e põe-nos logo à vontade na primeira abordagem.

Continua...