Virtual Realidade

Name:
Location: Portugal

Friday, April 07, 2006

Virtual Realidade Parte 30


Francisco pediu uns dias de dispensa no estúdio explicando a situação e partiu com a mãe para Madrid onde obtiveram a confirmação dos factos tendo mesmo identificado os corpos de Romero e Consuelo.
Mariana regressou a Portugal e Francisco seguiu para Pamplona.
Chegada a casa, Mariana nessa noite mal dormiu. Como iria ser a sua vida? E o filho, com o curso para acabar? Se não fosse aquele filho já teria abandonado a vida há muito tempo. Agora apenas pedia para o ver orientado e feliz. Francisco era a melhor coisa que algum dia teve e a quem nem tinha contado que havia um tempo a essa parte que não se sentia bem de saúde, para não o preocupar nesta fase da carreira dele.
Em breve iriam aparecer os herdeiros, via-se de novo na rua sem casa, o filho sem alojamento para continuar em Pamplona e sem ganhar o bastante para pagar uma renda, e com falta de forças para o poder ajudar.
Iria morar naquela vivenda dos arredores de Faro enquanto não aparecesse ninguém a reclamar a sua posse, e depois?

Mal amanheceu, Mariana levantou-se para enfrentar o dia.
Os seus protectores sempre lhe tinham dito que, se um dia algo de grave lhes acontecesse, se dirigisse ao escritório do advogado deles em Faro onde receberia todas as informações necessárias.
A Primavera estava próxima com o tempo já ameno e cheio de sol. Um sol que contrastava com as nuvens tenebrosas no horizonte de Mariana.
Pelas nove horas telefonou a marcar entrevista com o advogado. Só poderia ser recebida no dia seguinte pelas dez.
Saiu de casa e foi caminhando sem destino pelas ruas que em tempos tinha percorrido à procura da sobrevivência. Pareceu-lhe tão longínquo e tão perto esse tempo…
E Mariana pensava em como teria sido diferente a sua vida se não fosse a incompreensão dos homens. Lembrou-se de Jesus e daquele conto, o Suave Milagre que as freiras lhe liam muitas vezes, em pequena, no tempo em que viveu no Porto. Uma lágrima desceu-lhe pela face, salgada e quente como uma dor que corrói. Apesar de educada em ambiente profundamente religioso, não acreditava em deus porque as pregações dos ministros religiosos lhe pareceram sempre eivadas de contradições e faziam mais mal do que bem; mas sentia por Cristo um carinho especial.
Na educação do filho ela tinha procedido como imaginava que Jesus faria se tivesse sido ele a criá-lo. Ele não era um deus, mas um homem excepcional que tinha tido a sorte de não ter sido impedido de sentir a vida, a vida viva, a vida autêntica dentro de si, e por isso jamais seria capaz de fazer isso a uma criança.
Na sua ingénua simplicidade ela sentia que as pessoas eram seres mortos, autómatos sem vida, sempre prontos a proibir todas as manifestações genuínas da natureza nas crianças.
Ela sabia que eram essas proibições que estragavam a inocência e a bondade natural nas pessoas transformando-as depois em todo o género de aberrações da espécie humana.
Mariana pensava em si, na sua situação e na do filho face às dificuldades materiais, mas também em toda uma humanidade profundamente doente e com difíceis esperanças de cura. Não lhe apetecia comer nem ir para casa. Não tinha casa. Sentou-se numa esplanada e pediu um chá. Olhando a ria pôs-se a imaginar quantas tempestades se esconderiam por debaixo daquelas águas mansas, como se escondiam no coração dos homens por detrás do aparente calmo quotidiano. As pessoas andavam, os carros circulavam no ritmo habitual como se tudo estivesse pelo melhor no melhor dos mundos. Ninguém se importava, ninguém fazia nada para mudar as coisas, apesar de notarem que havia demasiados problemas no mundo: a droga, a pedofilia, a prostituição, o terrorismo…Mas não lhes conheciam as causas: a culpa era dos pretos, dos ciganos, dos muçulmanos…era preciso mais policia, leis mais duras, mais repressão, e os políticos esfregando as mãos de contentes porque assim poderiam impor as suas regras a uma humanidade desorientada e insegura, em vez de lhes fazerem ver que a responsabilidade era delas mesmas por pensarem daquele modo.
E o Eduardo por onde andaria? Como seria a sua vida, teria mulher, filhos? Nunca mais soube nada acerca dele. Tão gentil, tão carinhoso! Ainda seria assim ou estaria mudado?
Muitas vezes pensou procurá-lo mas imaginou que ele pudesse ter casado, tivesse a sua vida organizada, e o aparecimento dela só iria perturbar a vida dele. Por outro lado, tinha o filho e não queria ficar sem ele. Não queria correr esse risco. E depois era já demasiado tarde e a vida não se repete.

Era quase noite quando regressou a casa. A sua grande preocupação era o futuro do filho. O que faria agora? Chorar, não resolveria nada. Precisava muito de dormir. No dia seguinte teria de tomar o destino nas suas mãos, na medida em que isso lhe fosse possível. Tomou dois soníferos com uma chávena de chá e foi-se deitar.

A noite passou rápida e, graças aos comprimidos, bem dormida. Eram dez horas e cinco minutos quando Mariana foi convidada a entrar no gabinete do advogado.
Em meia hora contou-lhe tudo o que tinha acontecido e também a sua situação e receios quanto ao futuro. O advogado era amigo pessoal do casal e ficou muito consternado.
─ Mariana, sossegue que não fica na rua. Os meus clientes tomaram as medidas necessárias para a proteger. Para já só lhe posso dizer que vai ficar bem. Os seus protectores fizeram um testamento que será oficialmente apresentado e lido na presença de todos os herdeiros. Só nessa altura saberá tudo em pormenor. A partir de agora vou tomar todas as medidas necessárias no sentido de convocar os beneficiários para uma data a estabelecer. Até lá aguarde as minhas notícias. Prometo que tomarei isto ao meu cuidado para não demorar muito. Há também a questão do funeral…
─ Obrigada doutor! Eles sempre disseram que gostariam de ficar sepultados aqui mesmo em Faro quando morressem, e eu gostaria de tratar disso.
─ Sim, faça isso então. Fale com uma agência funerária que eles tratam de tudo. Alguma coisa de que necessite telefone-me ou procure-me. Preciso da certidão de óbito para depois legalizar as partilhas. A propósito, procure lá em casa nos papéis do senhor Romero algum documento que ache importante como cópias de escritura, seguros, etc. e traga-mos logo.
─ Farei isso doutor. Obrigada por tudo.
Despediram-se e Mariana saiu. Quando chegou a casa foi procurar os documentos. Encontrou várias cópias de escritura, uma relação de bens e uma apólice de seguro de vida. Sem ler nada guardou tudo numa pasta e telefonou ao advogado. Pouco depois encontravam-se para a entrega dos papéis.

Depois de dois meses de diligências e angústias, Mariana soube que tinha herdado a vivenda do Algarve, situada num bairro residencial dos arredores de Faro, de rés-do-chão, tipo T3 e com um pequeno jardim. Beneficiou ainda de um seguro de vida no valor de cem mil euros. O apartamento da Serafin Olave havia calhado em herança a um sobrinho do casal Romero, e Francisco, a quem a mãe agora já podia pagar uma renda, mudou-se para um T2 da avenida Sancho el Fuerte, ainda mais perto do estúdio de arquitectura onde estagiava.
Duas semanas depois Mariana foi para Pamplona morar com o filho.
O Verão aproximava-se e com ele as temperaturas elevadas da época, de uma cidade de clima continental.
Os dias decorriam normalmente. Francisco estava integrado no trabalho de estúdio e começava a orientar projectos e a assistir ao acompanhamento de algumas obras, o que o levava a viajar, muitas vezes para longe da cidade.
Mariana não pôde mais esconder do filho que se sentia doente e cansada.
─ Mãezinha, tens de consultar um médico. Vamos à Clínica de Navarra; é uma das melhores clínicas da Europa. Vem aí gente de todo o lado.
Mariana só se convenceu a ir a uma consulta quando começou a sentir dores na zona abdominal, e um dia respondeu:
─ Pois sim, meu filho, iremos.

Continua...