Virtual Realidade

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Friday, February 08, 2008

Virtual Realidade Parte 123






Francisco, segurando a pequena mala de viagem, viu aquele desconhecido aproximar-se rapidamente, de mão estendida, como se tivesse a certeza de saber quem ele era.
─ Francisco, não é verdade? Sou o Eduardo.
─ Sim, sou eu. ─ respondeu trocando um aperto de mão firme e cordial.
─ O livro resultou. A viagem foi boa?
─ Não muito. Correu um boato de atentado terrorista no comboio e viemos uma parte da viagem em sobressalto.
─ Ah sim?! Vamos indo e contas-me pelo caminho.
O carro arrancou e Francisco olhou com saudade para aquela velha cidade, a desaparecer na retaguarda, que tinha sido o cenário da sua vida durante uns anitos.
─ Guardo muito boas recordações do meu tempo de estudante e jamais esquecerei esta cidade de Coimbra!
─ Eu estive no Porto a frequentar direito, mas foi por pouco tempo. Os meus avós queriam a todo o custo que eu fosse advogado, mas o meu objectivo era ser engenheiro agrícola e acabei por não ser nada.
─ Eu sempre quis ser arquitecto, acho que desde que comecei a brincar com legos, e ninguém tentou impor-me outro curso.
─ Outros tempos! ─ disse Eduardo como um lamento. ─ Mas conta-me do comboio…
Acabado o relato Eduardo concluiu:
─ O mundo nunca mais se endireita.
─ E poderá haver alguma esperança de um dia as coisas melhorarem?
─ Não sei, meu amigo! Gosto de acreditar que sim, mas tenho muitas dúvidas.
─ O mundo é governado por criminosos.
─ É verdade, mas eles são o reflexo das sociedades a que pertencem. ─ respondeu Eduardo.
O carro seguia no IC2 e passava na zona de Condeixa, ignorando o acesso à A1.
─ Pensei que tomasses a auto-estrada! ─ exclamou Francisco.
─ Eu entendo a tua pressa em chegar, mas confesso que não gosto de conduzir em auto-estradas. Só em caso de necessidade real é que as uso. ─ respondeu Eduardo com um sorriso de compreensão.
─ Mas para mim é um caso de necessidade real! ─ respondeu Francisco, retribuindo o sorriso.
─ Tem calma que a Rita espera por ti. Não vivas apressadamente! Acredita que é um privilégio viver sem pressas e que nem todos se podem dar sempre a esse luxo. Então devemos aproveitar quando a ocasião se proporciona.
─ Mas a vida pressiona-nos.
─ Muitas vezes é tudo uma questão de a sabermos organizar.
─ Excepto quando estamos metidos em esquemas de gestão que nos impõem o ritmo.
─ Sim, no nosso trabalho as coisas não estão organizadas de acordo com os nossos ritmos biológicos. Nada como trabalharmos por nossa conta.
─ E risco…
─ Riscos há em tudo!
─ Gosto muito do meu trabalho e entrego-me a ele com prazer, mas o meu chefe é um chato; mais do que chato, é um sacana insuportável. Quer que eu fique a trabalhar para ele, mas assim que acabar o estágio despeço-me logo.
─ Tu é que sabes. Eu procuro ter uma vida calma, escolhendo o meu ritmo. Até a viajar procuro tirar partido, obedecendo ao código da estrada como se fosse um jogo de computador com missões a cumprir para atingir um fim. E uma estrada vulgar proporciona-me mais missões do que uma auto-estrada fornecendo-me muito mais distracção e prazer.
─ Encaras as viagens como metáforas da vida: problemas a resolver pelo meio e sem pressa de chegar ao fim.
─ Resumiste perfeitamente a minha ideia.
─ Eu também cumpro o código da estrada, mas porque entendo que assim é melhor para todos.
─ Mesmo que tenhas a certeza de que a polícia não está a ver? ─ riu Eduardo.
─ Isso não me preocupa absolutamente nada: não conduzo para a polícia ver mas segundo princípios de segurança.
─ Esse é o procedimento racional, mentalmente saudável, mas raro. Acabaste de me fazer aumentar a esperança no mundo, porque no modo de conduzir se reflecte todo o modo de funcionar de uma pessoa.
─ Devo agradecer o elogio indirecto? ─ perguntou Francisco a rir.
─ Se quiseres... O acto de conduzir ─ prosseguiu Eduardo ─ é um aferidor privilegiado do nível da nossa inteligência e um palco de exibição da nossa saúde psíquica. Nunca será solução definitiva aumentar a dureza da lei e/ou o nível de repressão policial para resolver o problema dos acidentes na estrada, nem essa solução passa por aí.
─ Penso que tudo tem a ver com educação.
─ Sim, mas em que sentido?
─ No sentido de desenvolver e não de atrofiar as nossas capacidades mentais.
─ É isso! E muita gente concordaria connosco, mas deixariam de o fazer se explicássemos o que é que atrofia a nossa mente e o que é que a desenvolve.
Atravessavam Pombal e Eduardo continuou:
─ Andas a par das notícias de cá?
─ Mais ou menos.
─ Isto da proibição de fumar em locais públicos fechados…
─ Sim, sim. Acho deplorável a reacção dos fumadores, já que a lei também para eles é favorável, na medida em que lhes permite dar tréguas ao organismo entre dois cigarros.
─ Claro, porque fumando em recintos fechados continuam a fumar quando apagam o cigarro.
─ Eu não fumo, mas se o fizesse, ao saber que prejudico os que não fumam, deixaria de o fazer perto deles.
─ É outro sintoma evidente da irracionalidade humana, embora eu entenda porque razão as pessoas fumam.
─ Falta de educação mais uma vez?
─ Prefiro dizer, excesso de educação. «We don’t need no education, we don’t need no false control...» ─ cantarolou Eduardo, acompanhando a música dos Pink Floyd que passava nesse momento no leitor de CD do carro.
Riram ambos e Francisco perguntou:
─ És a favor de quanto menos regras melhor, na educação das crianças?
─ Absolutamente.
─ Tens filhos?
─ Não tive essa sorte. Mas, como me conheço muito bem, estou certo de que saberia criar um filho devidamente.
─ Eu, para já, ainda não me consigo imaginar com um puto ao lado.
─ Pois vai pensando nisso! ─ aconselhou Eduardo ─ E se vieres a ser pai dos meus netos, por afinidade, e precisares de umas dicas… mas acho que a Rita será uma boa mãe, pelo pouco que conheço dela… e tu és sensato e não farás má figura com certeza. Acho que começo a conhecer-te um pouco.
Francisco limitou-se a sorrir e pensou para si mesmo que iria falar nisso à namorada.
─ Quer dizer que tu e a mãe da Rita…
─ Sim, em breve juntaremos os trapinhos. ─ interrompeu Eduardo, lendo-lhe o pensamento. ─ Apaixonámo-nos através do IRC. Um dia destes conto-te a minha história. Todos nós temos uma, não é?
─ É verdade, mas a minha tem pouco que contar. Só tem dois ou três pontos importantes: A minha mãe, não conhecer o meu pai e a Rita, agora mais para o fim.
─ O teu pai morreu antes de teres nascido ou quando eras ainda muito pequeno?
─ Espero que não e sonho vir a encontrá-lo um dia. ─ respondeu Francisco, longe de imaginar que o pai estava ali ao lado, à distância de esticar um pouco o braço esquerdo.
─ Abandonou a tua mãe quando ela ficou grávida?
─ Ela é que foi forçada a deixá-lo, segundo me contou.
─ Acontece. ─ disse Eduardo lembrando-se do seu caso com Mariana, mas sem o relacionar com o que Francisco acabara de lhe revelar. ─ Desculpa, talvez não te devesse ter perguntado estas coisas.
─ Não tem mal. É curioso que eu não costumo abrir-me com ninguém e contigo é como se nos conhecêssemos desde sempre. Até o facto tão natural de nos tratarmos logo por tu é estranho já que nunca nos tínhamos visto antes.
─ Quem sabe se não virás a ser o filho que eu não tive… ─ profetizou Eduardo sem saber muito bem porquê.
─ Acho que, pelo menos, vamos ser amigos, que pais e filhos nem sempre o são, e isso é o mais importante.
─ Eu diria que quase nunca o são, e é sempre nos pais que começa o erro, embora se esforcem por proceder bem e estejam convencidos de que o fazem; mas faltando-lhes o instinto e o conhecimento, jamais o conseguem e isso reflecte-se nos filhos. São sempre os filhos que nos mostram se os pais são ou foram amigos deles.
─ Estou a ver que tenho muito a aprender contigo.
─ Quem sabe, mas já estamos em Leiria e daqui a pouco mais de uma dúzia de quilómetros chegaremos a casa.
─ E eu só lá conheço a Rita e a Emília. A mãe da Rita só a vi de relance naquela viagem em que eu e a filha nos conhecemos.
─ Não te preocupes, vão todas gostar de ti. ─ vaticinou Eduardo ─ A Luísa põe-te logo à vontade, vais ver. E quanto a mim, já fazes parte da família e tenho a certeza de que nos vamos dar muito bem.
─ Obrigado pela confiança!
─ Agora posso dizer com sinceridade aquilo que as pessoas costumam dizer por convenção: «Prazer em conhecer-te!»
Francisco retribuiu a amabilidade. Dentro de si sentia aumentar a atracção, nascida desde as primeiras palavras que haviam trocado, por aquele ainda quase desconhecido. Esperara encontrar um «cota», de mentalidade conservadora, e dera com um homem mais velho sim, com idade para ser seu pai, mas de uma cultura aberta e racional que seria interessante descobrir. “Gostaria que o meu pai fosse assim!”, pensou.
Atravessaram a Marinha Grande em silêncio e só à saída, já em plena estrada para S. Pedro de Moel é que Eduardo voltou a introduzir notas na pauta vazia:
─ Estamos quase a chegar.
Vou ligar à minha mãe a dizer que já cheguei ─ disse Francisco a sorrir.
─ Força!
─ Olá, mãezinha! É para te dizer que já cheguei; estamos mesmo a entrar em S Pedro de Moel.
─ Fizeste boa viagem, filhote?
─ Sim, a viagem foi boa e o Eduardo estava à minha espera. Não te preocupes que eu estou bem. Assim que puder telefonarei com mais tempo. Um beijo grande!
Eduardo não se conteve e disse em voz alta, de modo a ser apanhado pelo telemóvel:
─ Não se preocupe que o seu filho está em boas mãos.
O coração de Mariana deu um baque. Ela conhecia muito bem aquela frase e lembrou-se de quem lha costumava dizer; e aquela voz era parecida... “Não pode ser! Devo estar a sonhar.” ─ pensou Mariana, mas o filho entretanto desligou e não pôde ouvir mais nada.
O carro parou em frente da casa de Luísa.


continua....