Virtual Realidade

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Friday, December 07, 2007

Virtual Realidade Parte 114



A noite caiu, silenciosa e fria, sobre a terra, e em milhões de pessoas pelo mundo fora, mesmo sendo a noite de Natal, em que as casas, daqueles que as possuíam, momentaneamente transformadas em pequenos oásis de felicidade, quantas vezes artificial, podiam ser vistas a grande distância, pela miríade de luzes faiscantes que nelas cintilavam.
Com o coração agitado pela euforia do Natal, as pessoas corriam para casa, para o aconchego da lareira acesa e a reconfortante ceia em família, carregadas com as últimas compras do dia. Era assim na cidade de Leiria e em qualquer outra por todo o país.
Eduardo tinha ido com Luísa buscar a mãe e regressavam a S. Pedro de Moel.
Ao notar toda aquela agitação, enquanto conduzia, abriu-se no coração dele um grande espaço para a dor, uma dor cruel, uma enorme agonia. E o seu olhar voltava a ficar sombrio e distante, enquanto as mãos moviam automaticamente o volante do carro em pequenas correcções de trajectória. A mãe de Luísa, sentada no banco traseiro, falava sobre a alegria do evento, o ambiente festivo, a ceia em família, as compras; aquele ritual que se repetia todos os anos e que ela adorava. Luísa respondia-lhe de vez em quando, até que se apercebeu de que algo se passava com o namorado, calado, abatido, como se o mundo inteiro pesasse nas suas costas, porque ele conhecia muito bem o significado de tudo aquilo. E Luísa também o conhecia demasiado bem…
─ Amor, ─ disse ela, despertando-o e fazendo-o lembrar-se de que também ele, afinal, fazia parte daquele tradicional esquema mundano e não valia a pena estragar as coisas causando a infelicidade das duas mulheres ─ não dizes nada?
─ Que há para dizer, doçura?
─ Não me pareces muito feliz! O que se passa?
─ Não se passa nada! Apenas vou com atenção à condução. Há muita gente ainda na rua.
─ Fazes bem, mas não podias mostrar-te um pouco mais alegre? Este vai ser o melhor Natal da minha vida e não quero que nada o estrague.
─ No que depender de mim será, amor, ─ prometeu Eduardo com um sorriso ─ mas não posso deixar de pensar que nós temos a felicidade de ir para casa e existem companheiros nossos, outras emanações da energia cósmica universal, que caminham ao nosso lado na vida e que não têm onde se abrigar nesta nem em todas as outras noites.
─ Tens razão, amor, mas que podemos fazer? ─ perguntou Luísa com tristeza.
─ É isso que eu me pergunto muitas vezes.
─ Muitos são malandros e não querem trabalhar. Preferem viver de pedinchice e não ter preocupações. ─ disse a mãe de Luísa.
─ Não será nossa culpa também que eles sejam assim?
─ Minha não é, de certeza! ─ respondeu convicta a velha senhora.
─ Estamos a chegar. Feliz Natal para vocês as duas! ─ disse ele para cortar a conversa, já que não acreditava que a mãe de Luísa o entendesse e não queria dar origem a animosidades.
Estacionou o carro e abriu a porta às duas mulheres.
Entraram em casa e encontraram Cristina e Rui, na sala, a conversar com o pai de Eduardo.
Rui veio direito a ele e deu-lhe um abraço.
─ Há quanto tempo! Foi preciso vir a casa da Luísa para te encontrar.
─ É verdade, mas não me acuses de nada que tu também, ultimamente, só vês a Cristina e não te lembras dos amigos. ─ respondeu Eduardo a sorrir e olhando para a amiga de Luísa pelo canto do olho.
Veio-lhe à ideia que ainda não tinha tido oportunidade de falar com a namorada sobre Sara, mas também não seria aquele o momento adequado.
─ Eu quero dar um beijinho, posso? ─ perguntou Cristina, aproximando-se dos dois homens, com um brilho de felicidade no olhar, acentuado pelas palavras que o namorado de Luísa acabara de proferir, mas no qual este notou uma leve sombra de tristeza cuja origem ignorava completamente.
─ Olá Cristina, como vais? ─ cumprimentou Eduardo, olhando-a no fundo dos olhos e oferecendo o rosto a uma troca de beijos.
Depois, Eduardo fez as apresentações do pai dele e da mãe de Luísa e deixou-os a falar sentados lado a lado no sofá da sala retirando-se, arrastado dali pelo amigo.
─ Prepara-te que a noite vai ser longa! ─ alertou Rui.
─ Como assim?
─ A Cristina tem um problema e eu queria falar contigo sobre isso. Precisamos de umas dicas tuas sobre como devemos lidar com um certo assunto que nos incomoda bastante.
─ Que assunto? ─ perguntou Eduardo um pouco preocupado.
─ Entre nós, o filho da Cris é gay. ─ disse ele, em voz mais baixa, depois de olhar para todos os lados, a ver se não havia alguém por perto.
─ Tens a certeza disso?
─ Acredito no que ela me disse. Ela já tinha suspeitado, até que ele, há uns dias, lhe pediu para trazer o amigo aqui hoje e lhe contou tudo.
─ Ah! E ela acedeu?
─ Sim, depois de falar com a Luísa. Foi-lhes recomendado que evitassem manifestações evidentes.
─ Não podemos eliminar alguns preconceitos sobre a homossexualidade e isso é péssimo.
Por exemplo, como é que, nós os hetero, vamos proceder esta noite?
─ Como assim?
─ Repara, se eles foram proibidos de manifestações amorosas, sentir-nos-emos no direito de as ter, nós os ditos normais? De quem foi a ideia? A Luísa não me contou nada.
─ Foi da Cris. A Luísa não deve ter dado muita relevância ao caso. Não lhe queiras mal por isso.
─ Claro que não. Ela deve encarar isso com muita naturalidade e não achou bastante importante para não se esquecer de me dizer.
─ E tu, o que achas?
─ O mesmo que a Luísa supostamente acha. Vamos deixar passar esta quadra e depois falaremos. Temos tempo de conversar sobre o assunto, não precisa de ser hoje. Sugiro que tenham calma e procedam com naturalidade também.
─ Pois temos tempo. É a minha preocupação pela Cris…
─ Eu entendo.
Aproximava-se alguém e Eduardo disfarçou dizendo, “Feliz Natal”, e afastando-se do amigo para ir à cozinha inspeccionar o andamento dos trabalhos.
Entretanto chegou o filho de Cristina com o amigo.

Sentados à volta da enorme mesa a saborear o prato tradicional (bacalhau cozido com batatas e couves) regado pelo bom vinho tinto, a harmonia e a boa disposição reinavam em todos os corações.
Luísa sentia-se a rainha de um castelo de cristal. Tinha à sua volta a família e os amigos íntimos e, sobretudo, o homem que amava. Os seus olhares cruzaram-se e ele parecia que adivinhava os pensamentos dela respondendo-lhe com um sorriso pleno de ternura.
Ela continuava embevecida a olhar para quase todos e o seu pensamento deteve-se no filho de Cristina. Tinha ficado sentado entre a Rita e a Sandrine, e o amigo ao pé da Emília. Cresceu à sua beira, frequentou a casa e até namoriscou a filha, e agora notava nele algo estranho, uma espécie de timidez culposa, e sorria-lhe dando-lhe coragem.
A mãe, quando soube, embora angustiada, incentivou-o a assumir a sua diferença. Na adolescência existem muitas dúvidas. Ele tinha sofrido demasiado com as suas incertezas e até com as opiniões dos amigos. Mas o apoio da mãe era agora fundamental já que o pai nem se imaginava como reagiria quando soubesse. Discretos, não queriam melindrar as pessoas que não podiam compreender as suas necessidades. Felizmente que nos dias de hoje já não era motivo para se isolarem completamente.
A mãe de Luísa abeirou-se da filha e, discretamente, segredou:
─ Dá atenção aos teus convidados. Parece que estás a milhas de distância!
─ Desculpa mãezinha!
Depois do bacalhau veio a tradicional doçaria: Filhós, sonhos, rabanadas, aletria, mexidos, tronco de Natal o colorido bolo-rei e os queijos. Se há dias de exagero esse é o Natal, esquecendo-se muitas vezes os que nada têm para comer.
Não faltavam elogios às meninas que se tinham dedicado a confeccionar tão saborosas iguarias.
O telefone tocou e Luísa pediu ao Eduardo para atender, visto ter ficado perto dele. Estendendo calmamente o braço, ele pegou no aparelho e falou:
─ Boa noite! Com quem deseja falar?
─ A Rita está?
─ Quem quer falar com ela?
¬¬─ O Francisco, de Pamplona.
─ Ah, Feliz Natal! Vou passar.
Eduardo chamou Rita e passou-lhe o telefone.
As conversas foram ficando mais íntimas e a família e os amigos também. Rui pediu licença e saiu da mesa seguido da Cristina minutos depois.
─ O que andará o Rui a tramar? ─ perguntou Eduardo intrigado.
─ Até parece que não conheces o teu amigo, amor!
Naquele momento ouviu-se um barulho lá fora e a sacada a ser empurrada, dando entrada ao pai Natal, carregado com um grande saco às costas.
─ Boa noite, amigos! ─ disfarçando a voz ─ Venho trazer os vossos presentes.
Todos perceberam que se tratava do Rui, mas entraram na brincadeira, fingindo que não o reconheciam, e riram às gargalhadas.
As prendas foram distribuídas uma a uma ao chamamento dos nomes dos destinatários, que, agradecendo, as foram desembrulhando, felizes com as surpresas.

Continua....