Virtual Realidade

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Friday, December 15, 2006

Virtual Realidade Parte 65


─ Tudo o que eu sinto, penso e sei vai neste sentido: ─ prosseguiu Eduardo cautelosamente ─ De um modo geral, nesta altura do desenvolvimento da Inês o que aconteceu para trás é irreversível no contexto do mundo actual. O que quer que os pais tenham feito de menos bom na educação dos filhos já determinou em elevado grau aquilo que eles são agora.
─ Queres dizer que a nossa filha já não muda? Desculpa mas eu não acredito nisso! ─ opôs Pedro.
─ Não é bem isso. Ela pode mudar no comportamento exterior. Mas não pode mudar o que sente. E são sempre os sentimentos que determinam, à priori, o nosso comportamento, embora ele, depois, possa ser alterado por um contributo e esforço crítico consciente, evitando, desse modo, que procedamos de acordo com o que sentimos, quando isso é socialmente inaceitável.
─ Explica-te melhor que não estou a entender nada. ─ pediu Teresa.
─ Vou tentar ser mais claro, talvez começando pelo início.
─ Acho bem! ─ disse Pedro com um sorriso.
─ Quando, a partir da infância, se incute nas crianças uma orientação moral contrária às suas necessidades naturais, o que acontece em quase todos os casos, todas elas, sem excepção, começam por se defenderem inconscientemente, adquirindo comportamentos e atitudes que nos levam a reprimi-las e a impor-lhes cada vez mais regras. Alguns desses comportamentos são as teimosias, as birras infantis e a necessidade de mentir…
Nenhuma dessas «maldades» nasce com as crianças; são comportamentos adquiridos como meio de defesa ou de reivindicação daquilo a que, pelo simples facto de terem nascido, têm direito: a liberdade de as deixarem crescer de acordo com a sua natureza. Essa educação tem por base uma tradição há muito estabelecida e aceite, apoiada e estimulada pela opinião pública e pelas religiões, mas completamente errada, como o comprovam todos os tumultos da nossa História e o modo como as pessoas adultas, de um modo geral, funcionam.
─ Mas os nossos filhos não têm sido reprimidos. Procuramos sempre respeitar a liberdade deles, dentro do possível.
─ Eu sei. Mas o mundo ainda é contrário à liberdade. Como eu dizia…essa moral, e todo o conjunto de regras a ela associadas, leva o instinto a entrar naturalmente em acção. Isso dá origem a mecanismos de defesa inconscientes que se estabelecem, não só a nível psicológico mas também a nível somático. Tudo porque os pequeninos não sabem nem têm forças para se oporem, de forma consciente, ao ambiente em que estão mergulhados e que sentem como hostil.
─ Queres dizer que a educação pode originar alterações ao nível fisiológico?
─ Sim, sabe-se que isso acontece sempre. É ponto assente por parte da ciência que
uma experiência psíquica pode causar uma resposta somática que produz alterações orgânicas permanentes. É a chamada fixação fisiológica de uma experiência psíquica. Úlceras gástricas, asma brônquica, espasmo do piloro, reumatismos e diversas doenças da pele, doenças cardíacas, acuidade visual, etc. Alguma investigação sobre o cancro também se dirige nesse sentido. O psíquico e o somático são dois processos paralelos que têm efeito recíproco. Muitas doenças do âmbito fisiológico poderiam ser evitadas se a educação não estivesse em contradição com a natureza.
─ É curioso, mas nunca tinha ouvido nada desse género. Isso leva-nos a olhar o mundo de um modo completamente diferente. ─ disse Pedro cofiando o queixo.
─ Eu não inventei nada, nem sequer descobri estas coisas. Limito-me a ler o que outros investigaram e a comparar esse conhecimento com o conhecimento de mim próprio. Olhando o mundo de fora, não encontro explicação mais satisfatória para a irracionalidade humana.
─ Mas porque é que, sabendo isso, a ciência não faz nada?
─ Porque isso não convém aos interesses dos senhores do mundo. E a ideologia dominante está demasiado entranhada nos hábitos e nas convicções das pessoas, através duma tradição milenar, para que seja fácil mudar o estado da educação. Os próprios responsáveis foram vítimas do mesmo processo e uma das características dessa educação é fazer por diminuir ou até anular a racionalidade e a capacidade crítica. Daí que seja tão difícil alterar alguma coisa. Mas, continuando o meu raciocínio, quando a criança, com esse conjunto de regras devidamente cinzelado no seu espírito, chega à adolescência e experimenta a sua própria revolução fisiológica, consequente da enorme actividade hormonal, a chegada da genitalidade, com inúmeras repercussões psíquicas, a necessidade de afirmação pessoal e de satisfação sexual, depara-se, de uma forma atroz, com a contradição entre a moral e as suas apetências ou necessidades naturais. Nessa altura a contradição é perfeitamente consciente e, se não houver aceitação das regras da moral, infligida pelo medo, há a revolta contra o mundo, evidenciada em actuações anti-sociais que justificam a existência das polícias e a marginalização. Em qualquer dos casos verificam-se atitudes irracionais de origem inconsciente.
─ Estás a dizer que se não fosse a educação tradicional não seria necessário haver polícia? Não achas isso demasiado utópico? ─ interpôs Pedro.
─ O aperfeiçoamento do mundo consiste na realização de utopias. Então tenhamos a boa vontade de as levarmos por diante, neste caso pelo bem das nossas crianças.
─ Não deixas de ter razão, mas tenho muitas dúvidas. Que seria de nós sem a polícia?
─ Aprofundaremos isso em outra ocasião. Prosseguindo… Sendo os pais e os adultos, de um modo geral, vistos e sentidos como inimigos, na medida em que são os defensores da moral, não merecem, do ponto de vista dos filhos, que se confie neles para o desabafo dos problemas mais íntimos. Acabam, por isso, em apoiar-se nos amigos e colegas da mesma idade que sabem tanto como eles e foram educados de modo idêntico. É o mecanismo da influência, das chamadas más companhias que levam muitos pais a aumentarem o rol das proibições, impedindo os filhos, por exemplo, de saírem à noite.
Os conhecidos conflitos da adolescência não existiriam sem aquela imposição de uma moral antinatural. Geralmente falamos disso como se fosse um facto atavicamente irremediável naquelas idades. A crise da adolescência existe apenas porque, nesse período, o sentimento da contradição entre natureza e moral é muito mais intenso do que em qualquer outra fase da vida.
Teresa e Pedro ouviam o amigo com toda a atenção. Sabiam, há muito, que ele entendia bastante de crianças, mas estavam longe de imaginar que os seus conhecimentos fossem tão longe.
Eduardo continuou:
─ Essa crise traduz-se numa luta tremenda entre o dever moral e a natureza. É a fase de todos os perigos que leva, muitas vezes, os jovens a perderem-se nos caminhos da droga e outros, quando não conseguem suportar a batalha. Tudo se podia evitar com um pouco mais de compreensão e ausência de preconceitos. A natureza é decente e não precisa de outras regras, além daquelas que lhe são próprias e que nascem connosco. Os nossos instintos são precisamente essas regras naturais e não devemos ter medo deles. Se os seguíssemos à risca o mundo seria bem melhor e não daria origem a indivíduos frustrados, como aquele que, tudo o indica, anda a perseguir a vossa filha.
─ No geral, parece-me compreensível e aceitável o que tu dizes. Aliás, não sei que outra explicação se poderia dar para o comportamento da maioria dos adolescentes. Muitas vezes parece uma idade parva em que só fazem asneiras, como se andassem à deriva, apesar de, em muitos casos, se mostrarem bem convencidos do seu papel.
─ E aqueles que nós conhecemos como os mais certinhos, os bem comportados, os exemplares… escondem muitas vezes grandes conflitos interiores que não conseguem extravasar. São os tímidos, os que sofrem mais, os candidatos a uma vida de grande infelicidade que, por vezes, pode até levar ao suicídio.
─ Sim, a tua análise parece essencialmente aceitável e, em grande medida, correcta. Mas há muitos outros pontos que não ficaram bem claros, como o papel das religiões, o problema das drogas, o modo como a educação origina doenças físicas e as implicações sociais dessa mesma educação…Além disso, um mundo sem alguém que nos governe, que tome conta da nossa segurança, parece-me inaceitável. E, tem paciência, mas isso de dizeres que os pais são encarados como inimigos dos filhos choca-me muito! Todos os pais que nós conhecemos amam os filhos e fazem o melhor por eles. Nós também amamos os nossos filhos e fazemos por eles o melhor. Ou duvidas? ─ perguntou Teresa, não conseguindo evitar alguma agitação na voz.
─ Eu sei que fazem, mas… ─ respondeu Eduardo, numa hesitante defensiva, sentindo que talvez tivesse ido demasiado longe. Não queria acusar ninguém nem ficar de mal com os amigos.
─ Mas o quê? ─ indagou Teresa, um tanto agressiva, esforçando-se por manter a calma que lhe começava a fugir.
─ Acalma-te, Teresa! O Eduardo é nosso amigo. Deixa-o explicar-se; não temos nada a perder com isso. ─ acudiu Pedro, numa atitude racional, notando que a mulher estava a ficar alterada.
Teresa calou-se e Eduardo, sentindo algum apoio por parte do amigo e embalado pelo raciocínio anterior, deixou cair esta frase:
─ Os pais continuam a submeter os filhos à doutrinação das religiões, no nosso meio a católica.
Ao dizer isto olhou para o Pedro esperando uma reacção desfavorável, mas este limitava-se a olhar a esposa receoso de que ela explodisse.
Teresa era oriunda de uma família onde a tradição católica tinha muito peso e a influência que o meio familiar tinha tido nela era bem conhecida de ambos. Mas, como a amizade do Eduardo estava acima de qualquer suspeita, a sua capacidade de tolerância sobrepôs-se à revolta que sentia crescer dentro de si. Mais calma, disse:
─ Hoje já é tarde, mas vais ter de nos explicar tudo isso muito melhor. Fiquei muito curiosa sobre as tuas ideias e acho-as fascinantes. Desculpa se comecei a elevar a voz. Tu não nos vieste acusar de nada, apenas ajudar, e só temos de te agradecer por isso. ─ e depois de uma breve pausa: ─ Só há uma coisa que gostaria de saber agora: como é que tu, não tendo filhos, te dedicaste a aprender isso tudo?
Eduardo olhou para o relógio e, sorrindo, respondeu:
─ Como tu dizes, é bastante tarde e isso levaria algum tempo a explicar. Só vos digo que a certa altura da minha adolescência senti uma enorme necessidade de me conhecer muito bem e à minha entourage, por razões de defesa da sobrevivência do meu edifício psíquico num mundo que me parecia profundamente hostil. Vamos dormir?

Continua...